Flávio Cruz

Esse estranho mundo...

Textos

 
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Há alguma coisa errada com o céu do Raymond
 
Ele sabia que havia algum problema. Estava fazendo um esforço enorme para se lembrar. Andava numa estrada que ele parecia conhecer, mas não sabia exatamente para onde ia. Tinha aquela sensação interior de que, em alguns instantes, tudo voltaria à sua mente. E mais: sabia que algo semelhante havia acontecido  antes. Continuou a caminhar, devagar, tentando se recompor, tentando entender o momento. Não sentia dor nenhuma, ao contrário, um bem-estar quase irresponsável, levando-se em conta a situação em que se encontrava. Olhou a paisagem dos dois lados e imediatamente reconheceu que estava numa região árida. Deveria se preocupar? Talvez sim. Entretanto sua mente estava tranquila.
Agora Raymond estava olhando para o céu. Não havia nuvens e o ar estava parado. Pelas imagens que via, provavelmente estava muito quente, mas ao contrário, ele poderia jurar que aquela era a melhor temperatura que um ser humano poderia sentir. Tanta perfeição para quem nem sabia onde estava, chegava a preocupar. Esse pensamento acabava de vir à sua mente, quando finalmente notou algo que o inquietou.
O céu. Algo não estava certo. Raymond tinha certeza de ter arquivado em sua mente qualquer matiz de céu possível, em qualquer condição climática, sob qualquer combinação imaginável de condições atmosféricas. Havia algo naquela cor que não ia bem. Ao mesmo tempo que pensava isso, começava a recuperar a memória. Nada recente, mas sua história, sua meninice, sua juventude, sua formação, já apareciam vivas e com detalhes. E isso explicava, de certa forma, porque estava tranquilo. Sabia que era extremamente inteligente e certamente iria entender o que havia de errado com o firmamento.
E assim fez. Pensou bastante e chegou a uma conclusão óbvia, porém assustadora. Aquele céu não era real. Não podia ser. Esta verdade, incrivelmente óbvia, ao invés de assustá-lo, deixou-o excitado. Tinha ali, à sua frente, um enigma para resolver.
Partindo do princípio básico de que uma parte da paisagem não era real, não havia dúvida de que o resto também não era. Difícil de imaginar, uma vez que podia sentir seu corpo, seu coração batendo... Podia agora sentir uma brisa que trazia consigo o perfume de alguma planta, de uma flor. Abaixou-se, pegou uma pequena pedra pontuda e riscou o seu braço. Imediatamente viu uma pequena linha vermelha se formar sobre a pele. Era seu sangue, sem dúvida. Deu um beliscão em sua bochecha e sentiu também. Ele existia, estava vivo. Será? Lembrou-se vividamente de ter visto filmes, lido livros sobre realidade virtual. Ele poderia estar sendo “vítima” de um experimento. O céu, um pequeno erro no sistema? Talvez  a cor do céu estivesse certa e a sua lembrança dela é que estava errada. A cor estava certa, o que ele lembrava dela é que era diferente?
De qualquer forma, estava impressionado com a própria inteligência. Ou, conforme ele mesmo pensou, com a inteligência que o criou. Enquanto analisava o resto da paisagem, considerou que talvez fosse impossível se chegar a uma conclusão. Se ele fosse parte de algum projeto, ele nunca poderia sair daquela “prisão”, para poder ver de fora, fazer uma análise da própria realidade. Como você mesmo pode dizer se você é real?
Enquanto continuava a caminhar, deu um pequeno descanso à mente.  Podia ser que alguma ideia, ou uma intuição, surgisse para esclarecer o impasse. Quando começou novamente a pensar quase se irritou com o óbvio. Havia outras possibilidades a considerar. Claro que ainda não havia abandonado a ideia de ser apenas um elemento de uma realidade criada por alguém. Talvez por um cientista maluco.
Como não tinha pensado nisso antes? Ele podia ser um clone. Talvez mantido em estado de hibernação por um longo tempo, até chegar a hora de precisar substituir sua “matriz” que talvez tenha morrido ou se acidentado de tal forma que não podia ser recuperada. Fizeram então a transferência de memória, sensações, tudo que sua “matriz” tinha. Na própria memória que havia sido transferida para seu corpo havia aquela ideia sobre clones, como funcionavam, como a sociedade científica estava usando essa “tecnologia”. Sim, era bem possível. E o “defeito” no céu? Algum problema na hora da transferência dos dados para o novo corpo. A realidade tinha de estar certa, o que estava errado era a percepção que ele tinha dela. Além disto, isto explicaria aquele tipo de “intuição” que ele às vezes tinha. Um clone certamente poderia ter intuição. Faz parte do que é um cérebro. Já na realidade virtual... Bom, depende, eles podem simular tudo, por que não uma “realidade virtual intuitiva”?
Definitivamente, as duas possibilidades, clonagem e realidade virtual, tinham chances iguais de serem corretas. Qualquer uma das ideias era viável.
Talvez fosse um personagem criado para participar desses moderníssimos jogos que haviam desenvolvido há algum tempo. Os fabricantes  eram extremamente competitivos e havia boatos que estavam usando cérebros humanos, de corpos irrecuperáveis, para criar essas peças do jogo, numa interação dos neurônios humanos com os avançadíssimos equipamentos já desenvolvidos. Tudo para que os participantes virtuais dos jogos agissem como humanos, pensassem como tal, e, assim fossem realmente um páreo para os clientes cada vez mais exigentes.
Sim, poderia ser isso. Sua intuição, embora não totalmente, estava flertando com essa hipótese. Ficou até imaginando uma luta dele com algum participante. Talvez uma caça no deserto onde ele fosse a caça. Explicaria por que ele apareceu, ali, de repente, naquela região sequíssima. Olhou para o horizonte na expectativa de aparecer algum caçador com alguma arma. Tentou vislumbrar as chances  de escapar e vencer seu algoz. Depois pensou, para quê?  Se fosse verdade essa possibilidade de ser apenas uma peça num jogo, era melhor se entregar e acabar  de vez com a história. Mas talvez os seus “donos” o pusessem de volta no jogo, repetidamente... Não, não era uma boa ideia.
Ainda bem que essa possibilidade era remota. Tinha quase certeza de que havia outra explicação.
Raymond não entendia por que aquela ideia não lhe havia ocorrido antes. Certamente era a mais óbvia, a mais verossímil. Talvez seu subconsciente não lhe estivesse sequer permitindo considerar essa possibilidade: estaria ele dormindo? Por alguma razão estaria tendo um sonho induzido. Não poderia ser um sonho natural, ele podia sentir isso. Era extremamente vivo, e certamente teria sido criado artificialmente. Por que teriam feito isso? Talvez para curar uma doença mental? Ou curar um trauma terrível?  Teriam transferido uma memória “inventada” para substituir alguma outra experiência desastrosa da vida real? Se fosse isso, eles tinham realmente criado um software extraordinário. A sensação de realidade era quase perfeita. Talvez ele fosse um criminoso, um monstro, que precisasse de conserto. Estava ali, no nível mental, reaprendendo as regras sociais, uma maneira aceitável de viver. Isso explicaria aquela paz, aquela serenidade que ele sentia. Tudo estava sendo “plantado” em seu cérebro, durante o sono, para criar um novo homem, um novo ser social. Era bem possível, o homem sempre sonhara com uma sociedade perfeita, sem crimes, sem problemas. Talvez aquela fosse a solução. Ao invés de ser executado ou ir para a prisão para sempre, ele estava ali sendo consertado através do sonho, da implementação de uma nova  “história”, de uma nova “memória”. Quando voltasse, seria outro homem. Sem perigo para a sociedade.
Foi então que Raymond sentiu que alguém estava “mexendo” com ele. Até então, por mais estranha que fosse a situação, era só ele, o que era quase um consolo. Estava vivendo bem naquele mundo, sem se preocupar. E agora? Que tipo de interferência haveria? De qualquer forma, teria de enfrentar a situação. Resolveria a questão, acabaria a dúvida. Ele podia sentir as pessoas, mas não as via nem as ouvia. Estranho, porém compreensível. Mais uma prova, definitiva, de que ele não era simplesmente uma pessoa, um ser humano normal. Sim, a essa altura isto já estava claro. Sob este novo ponto de vista, o que é normal? Talvez a realidade virtual pudesse ser mais “normal” do que as outras...
Estavam para fazer alguma coisa, podia sentir. As vibrações que vinham do cérebro daqueles dois mostrava uma certa excitação, como se estivessem para experimentar algo novo, algo que nem eles mesmo conheciam. É, ele tinha registro disso, essa “excitação” por criar coisas novas, por inventar. Certamente ele era objeto de um experimento. Isso estava claro. Já não estava mais no deserto. Estava em lugar nenhum agora. Era uma paisagem vazia, abstrata.
Na verdade havia dois especialistas conversando. Eles estiveram ali o tempo inteiro. Antes ele não os ouvia. Agora não só estava escutando a conversa, como também podia vê-los, mas não como se estivesse com eles, podia vê-los em sua mente. Ambos usavam um uniforme. Sim, lá estava no crachá:  ULTRALIFE.
Inteligente que era, Raymond imediatamente entendeu que era algum projeto com mentes humanas. Ele era um cérebro humano, ou o que havia dentro dele. Para dizer a verdade, esse cérebro, agora estava sem corpo. Isso ele podia garantir. Talvez isso explicasse por que ele via, sentia e ouvia as pessoas em sua cabeça, mas não diretamente.
-O que você acha, Dr. Stelth?
-Obviamente as coisas não funcionaram do jeito que queríamos. Está claro que há alguns problemas de transferência. A “realidade” do Raymond está com falhas.
-É, eu sei. Se pudéssemos fazer um novo upload, tudo ficaria bem. Mas o corpo deteriorou muito, agora não dá mais.
-Resumindo, temos só duas opções. Ou completamos o processo do jeito que está, com essas pequenas falhas de realidade virtual ou abandonamos o caso.
-Para ser bem honesto com você, acho melhor abandonarmos o caso.  Não é nossa falha o que aconteceu com o original. Por outro lado, se permitimos que Raymond saia por aí com um defeito desses, não vai ser bom para a ULTRALIFE.
-Concordo totalmente!
-Ok, vamos fazer o processo de terminação para o corpo do Raymond. Quanto aos dados...
-Você quer guardar por um tempo ou simplesmente deletamos tudo?
-É melhor deletar. Alguém da comissão pode querer examinar os dados e ter uma opinião diferente, só por motivos políticos, e nós vamos ficar o tempo todo com esse problema das falhas por aí... Você sabe, algum idiota é capaz de falar que foi culpa nossa e... enfim, é melhor garantir. Delete tudo e devolva o aparelho para o setor de equipamentos usados.
Foi aí que Raymond finalmente entendeu tudo. As coisas se encaixavam completamente. Não estava apavorado, mas não concordava com os doutores. Achava melhor guardar seus dados. Nunca se sabe. Claro, essa tal de ULTRALIFE deve ter seus protocolos. A realidade que ele sentia estava boa assim, nem precisava de corpo. Era só um probleminha com o firmamento. Ele nem ligava para isso. Quem precisa da cor exata do céu?
De repente Raymond sentiu que alguma coisa muito importante estava acontecendo. As coisas não estavam mais claras como antes, não conseguia raciocinar. Já não se lembrava mais da infância. Agora nem mais de seu nome se lembrava.
No monitor do Dr. Stelth, havia uma linha horizontal, igual essa dos hospitais, quando uma pessoa morre. No canto da tela, do lado direito, dizia: processo completo.
Foi assim que terminou a história do Raymond. Tudo por causa de um defeito no céu. 

 
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Flávio Cruz
Enviado por Flávio Cruz em 12/11/2020
Alterado em 12/11/2020


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