Flávio Cruz

Esse estranho mundo...

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Niord: a nova morada
Por 32 anos a espaçonave Nitliv cruzou o espaço, numa louca aventura, rumo ao planeta Niord. Era uma megaespaçonave com 97 tripulantes. Missão: iniciar a ocupação do que seria a nova Terra. O século 29 chegava ao seu final. Finalmente Nitliv já orbitava o lindo planeta, muito parecido com o nosso. Por causa de alguns elementos diferentes na atmosfera, ela tendia para o verde. Havia muita água, no entanto a quantidade não se igualava à da Terra. A vida ainda estava nos estágios primitivos de formação.  Já se conheciam com precisão todos os detalhes de Niord há pelo menos 450 anos. A ocupação foi preparada com esmero e cuidado. A tripulação ainda estava na ala de criogenia da nave e os computadores inteligentes estavam cuidando de sua “ressurreição”. Por segurança, primeiro seriam “ressuscitados” apenas três navegantes. Eles tomariam as primeiras medidas e principalmente funcionariam como “cobaias” no novo ambiente. Com a tecnologia tão avançada, no entanto, havia pouco a arriscar, quase tudo havia sido previsto.

A nave  Nitliv-2 estava programada para chegar cinco meses depois. Ela carregava mais de 2.000 passageiros. Embora eles tivessem funções técnicas, sua principal missão era popular o novo planeta.  Além disso havia material genético suficiente para gerar  pelo menos dois milhões de seres humanos nos primeiros anos. Embora os materiais mais importantes estivessem na primeira nave, a Nitliv-2 também trazia bastante equipamento.

Os três primeiros a serem trazidos de volta do congelamento foram Leo, Martin e Saranova. Mesmo depois de acordados, ainda ficaram em suas cápsulas por mais de 5 horas para adaptação e ajustes. Martin foi o primeiro a se levantar. Caminhou nu por três metros, cobriu-se com uma roupa sintética leve, abriu a sala de criogenia, caminhou por um corredor e atingiu a sala principal da Nitliv. Enquanto caminhava, Martin repetia com admiração quase infantil para si mesmo:  “Estou em Alfa Centauro.” Por dentro sentia uma excitação enorme, misturada com orgulho e um certo receio. Apesar de veterano, comandante de diversas missões, ele não conseguia conter seu entusiasmo.

Tudo fora programado de forma a amenizar o impacto de viver tão distante. Afinal aquela era uma missão sem volta. Todos vieram para ficar. Por isso a grande sala tinha sido preparada com esmero. Martin sentiu como se estivesse na Terra. As “janelas virtuais” mostravam, de um lado, um bosque cheio de arbustos, diferentes plantas, frutos e flores. De outro lado havia um lago e umas montanhas. Ah, e o vento soprava, leve, suave... Deveria ser uma tarde de  primavera. A parte “profissional” do Martin não se deixava enganar, ele sabia que aquilo não era real. Mas ele não conseguia conter o entusiasmo. Tal era a perfeição da montagem, que uma sensação gostosa invadia seu ser. Embora Niord tivesse uma semelhança incrível com a Terra, ainda havia diferenças fundamentais entre as duas. A tecnologia avançadíssima se encarregaria de preencher as lacunas.

Martin foi até um dos terminais para fazer as primeiras verificações. Mal deu os primeiros comandos verbais, ouviu a suave voz de Netus, o computador, avisando que Leo e Saranova estavam se levantando. Encontrou-os no meio do caminho já vestidos com suas túnicas. Foi uma alegria, pois fazia 32 anos que não se falavam, pelo menos em termos técnicos. Na prática era como se tivessem se visto há alguns dias apenas. Os três foram juntos checar as novidades com Netus. Não se sabe se por brincadeira ou por saudosismo, o criador de Netus lhe dera a mesma voz de Hal, o famoso computador do filme 2001-Uma Odisseia no Espaço, famoso pela visão de inteligência artificial que oferecera no final do século 20. Netus deu as boas-vindas e repassou-lhes alguns dados técnicos. Tudo estava de acordo com as previsões. O descongelamento do resto da tripulação se daria em 24 horas. De imediato deveriam fazer uma inspeção dos arredores, fora da nave, antes de pousar. Três horas mais tarde, os três vestiram uma veste especial para sair. Embora já estivesse confirmado por Netus que as condições atmosféricas estavam de acordo, por precaução estavam levando suprimento de oxigênio e usavam um capacete especial. A paisagem lá embaixo, era verde com alguns toques marrons e cinzas. No entanto não havia nada parecido com plantas, pelo menos que se pudesse ver da altura em que estavam. O verde era das rochas e da atmosfera. A cena inspirava ao mesmo tempo grandeza, temor e expectativa. Flutuaram juntos, olhando a nave por fora e ao mesmo tempo o solo, lá embaixo, onde pousaria a Nitliv. Estavam fora da nave há uma hora quando Netus informou que havia uma emergência e que deveriam voltar para o interior.

A  reunião dos quatro foi para Netus informar que o processo de ressuscitação do resto da tripulação estava suspenso. O motivo era a falta de contato com a Nitliv-2 que deveria estar a caminho. Poderia ser apenas um problema de comunicação, mas a hipótese de a nave não chegar poderia requerer a suspensão de toda a missão.  Martin pensou consigo mesmo que aquilo não tinha sentido pois eles iriam ficar ali para sempre de qualquer jeito, como a missão poderia ser “suspensa”?. Não quis continuar sua linha de pensamento, pois suspeitava que Netus tivesse a capacidade de ler expressões faciais, juntá-las com ondas elétricas emitidas pelo cérebro e perceber o que estava se passando em sua cabeça. Mais tarde, lá fora, comentou suas ideias com Leo, que o tranquilizou, argumentando que provavelmente era apenas uma medida preventiva, diante de uma situação inusitada. Martin respondeu com cinismo se ele havia pensado na possibilidade de Netus optar por nunca ressuscitar os demais até que 32 anos mais tarde chegasse uma nova tripulação da Terra. Na verdade 37 anos, completou. Um ano de preparação e quatro anos até a mensagem de Netus chegar até nosso o planeta natal. O que aconteceria com eles, que já estavam acordados? O prognóstico não seria nada bom. Entretanto não havia muito o que fazer além de esperar.
Já eram trinta horas da chegada e Netus ainda não tinha autorizado o descongelamento da tripulação e agora era oficial: a meganave Nitliv-2 estava realmente desaparecida. Na verdade, as indicações eram de que ela estava voltando para a Terra há uma semana. Diante do absurdo da informação, o próprio Netus se negava a confirmar a volta e assim, oficialmente ela estava desaparecida. Ordens da Terra? Altamente improvável. De qualquer maneira, se isso fosse verdade, a ordem tinha sido dada há mais de quatro anos. Provavelmente a Nitliv-2 teria se recusado a obedecê-la por ser  irracional. O trio estava atônito. O improvável, o absurdo, estava acontecendo. Martin sabia que havia algo mais por trás disso. Ele não podia confiar em ninguém, nem mesmo em Netus. Claro, ele sabia que Leo e Saranova também eram vítimas daquela situação como ele e eles estariam a seu lado.

A suspeita de Martin, compartilhada agora por Leo e Saranova, de que havia algo estranho na missão foi confirmada pelo próprio Netus, a inteligência artificial da Nitliv. Netus informou que havia detectado sinais estranhos vindo de alguns pontos do planeta Niord. Para verificar melhor o que significavam, ele estava mandando robôs em unidades voadoras para os locais de onde os sinais vinham.  Leo requisitou de Netus uma explicação para o que estava acontecendo, uma vez que o planeta supostamente só tinha formas primitivas de vida. O que estava acontecendo era um indicativo de que poderia haver vida inteligente. Netus retrucou que a situação era excepcional e que ainda não tinha dados para dar uma explicação.
Apenas os três sabiam da existência de um computador extra, completamente separado do sistema da nave, o Netus-2. Ele não era tão poderoso como Netus e nem precisava. Seu  objetivo era outro. Ele deveria ser ativado apenas em caso de crises gravísssimas. Estava instalado num compartimento separado que poderia se autodesligar  da nave-mãe. Poderia ser usado como uma nave pequena para distâncias interplanetárias. Por um lado, era seguro pois não poderia ser corrompido ou manipulado pelo computador principal. Por outro lado, ele não tinha o mesmo acesso  a dados. Precisava ser “alimentado” separadamente.  Foi Saranova quem levantou a possibilidade  de acionar o sistema de resgate. Martin e Leo concordaram imediatamente, pois, a esta altura, estava óbvio que o objetivo da missão estava comprometido. Martin se encarregou de captar dados de Netus, sem que ele percebesse. Com os dados em mãos, os três foram até a parte lateral-traseira da Nitliv e entraram no compartimento da Netus-2. Alimentaram o sistema. Além disso,  Netus-2 também requisitou que os três tivessem seus cérebros “escaneados” para que todas as informações e “sensações” dos três, inconscientes ou não, fossem também analisadas. Após 15 minutos saíram as primeiras conclusões e elas eram surpreendentes.
A primeira e mais importante era de que havia vida inteligente no planeta, porém provavelmente não estaria ocupando unidades biológicas, ou seja, corpos. A ordem para a Nitliv-2 voltar para a Terra foi gerada de Niord, desses mesmos seres inteligentes que estavam “sem corpo” e não da terra. A  presença da segunda nave obviamente não era de interesse da “inteligência” niordiana. O sistema para descongelar o resto da população da nave estava fatalmente comprometido, ou seja a tripulação estava perdida, ou pelo menos congelada sem previsão de revisão. Parecia óbvio agira que os membros da tripulação que ainda estavam congelados iriam ser usados pelos “seres” de Niord, que precisavam de corpos biológicos. A suspensão do descongelamento fora propositadamente feita por Netus por ordem vinda da mesma vida inteligente. Os niordianos precisavam destes corpos em estado de criogenia para poder fazer a “transferência” de suas identidades biológicas. E os robôs que Netus mandara não eram para pesquisar os sinais. Eles foram enviados para servir aos seres do planeta em algo que ainda não estava claro.

A Netus-2 ainda não tinha as conclusões finais ou como resolver o problema. O trio estava devastado. Uma missão tão importante estava perdida. Foram quase cem anos de pesquisa e depois 32 anos de viagem. Tudo perdido. Isto tudo sem falar do risco que estavam passando agora.

Nesse ponto a situação se tornou crucial ou chegou a “hora da verdade”, como se dizia antigamente. Martin  conversou com os outros dois e tomou uma decisão. “Falaria” com Netus. Ele estava comprometido, a “inteligência local”  operava parte de seu sistema. Mas, por outro lado, ele ainda conservava a parte básica, ou seja, os dados e a força para comandar a missão e deveria estar ainda mantendo sua integridade. Foi o que aconteceu. Netus admitiu que a Inteligência local estava dominando boa parte de seu sistema. Martin disse que precisava de tudo que ele tinha de dados de Niord e de seu comando central antes que ele perdesse controle total da situação. Netus concordou e falou algo que surpreendeu os três. Ele achava uma excelente ideia ter o Netus-2. Embora fosse secreto, era lógico para sua inteligência e para o que ele conhecia do ser humano que existisse tal opção. O tempo todo Netus sabia do Netus-2, mas mesmo que quisesse não poderia fazer nada a respeito.

Rapidamente os dados fornecidos por Netus foram levados para Netus-2. Desta vez  ele deu uma descrição detalhada da situação e tirou mais conclusões. A civilização de Niord havia sido liquidada há alguns séculos por fatores que ainda não se podiam deduzir a não ser através dos próprios sobreviventes. Esses perderam seus corpos, como todo o resto da civilização, mas tinham conseguido antes disso transferir toda a sua informação biológica, com perfeição, para máquinas sofisticadíssimas que estavam no subsolo do planeta,  a uma profundidade de mais de 4 quilômetros, por motivos de segurança. Desde o início da pesquisa da Terra sobre o planeta, os niordianos manipularam os dados.  As informações que iam para a Terra através de missões não tripuladas, foram cuidadosamente “plantadas” por eles. Devido ao tipo de civilização que eles tinham e à densidade demográfica muito baixa, conseguiram também “disfarçar” os restos da civilização destruída antes de se retirarem para os enormes bunkers. Armazenaram toda a informação de cada indivíduo, em termos atômicos, em termos de genética e inclusive de autoconsciência. Depois destruíram seus próprios corpos, pois não haveria como mantê-los nas circunstâncias. Enviaram sinais de vida para toda a galáxia, esperando que alguma civilização curiosa se interessasse. A vítima foi a Terra. Tudo foi minuciosamente planejado. Eles precisavam de 97 corpos inicialmente para que os líderes os ocupassem e depois administrassem o resto do crescimento da população com o material genético que estava guardado na nave vinda da Terra. Eles sabiam tudo, como os terrestres iriam reagir, como seriam atraídos para Niord. Talvez até tivessem alguém “infectado” por eles – através de uma das naves que vieram antes para pesquisa - no  grupo que planejou essa última grande missão. Esse  alguém teria feito o plano ocorrer exatamente como eles queriam. E foi o que aconteceu. Foi por isso que o primeiro ato deles foi impedir o descongelamento dos tripulantes. Mas eles falharam em parte porque os três primeiros conseguiram sair da criogenia. Falharam também porque não sabiam da nave de resgate comandada por Netus-2. Eles eram extremamente parecidos com os humanos, só que estavam milhares de anos na frente em termos de tecnologia e ciência.

Não havia o que fazer, não havia espaço nem tempo para heroísmo. Tinham de sair imediatamente, apenas os três, antes que fossem aniquilados pela “inteligência” local. Precisavam avisar a Terra do perigo. A mensagem chegaria em 4 anos e eles em 32. Além disso os seus próprios robôs estavam para voltar – tinham saído há horas – e poderiam estar voltando munidos com armas de Niord para liquidá-los,  antes que pudessem sair. A essa altura o trio tinha certeza de que a Inteligência de Niord já sabia de sua intenção de voltar para a Terra.

Entraram na nave de resgate, deram as instruções para Netus-2, apenas por formalidade, pois este já sabia de tudo. Partiram para o espaço profundo sem problemas. Cinco horas depois, antes de entrarem em ultravelocidade, o que obrigaria seu congelamento, fizeram o histórico para ser repassado para a Terra. Havia pouco espaço na nave, mas não importava, eles estariam em estado de hibernação.

Ficaram conversando um pouco e analisando como foi que a Terra, com toda sua tecnologia poderia “cair” numa armadilha tão simples? Ingenuidade, arrogância ou sentimento exagerado de poder? Por outro lado, argumentou Saranova, a Inteligência local também não deduziu uma coisa mais ou menos óbvia, a nave de resgate e um sistema de inteligência independente para dirigi-la.
Passaram-se apenas alguns segundos quando veio uma mensagem de Niord. Eles ficaram boquiabertos. Niord e sua comunidade científica agradeciam a presença deles no Planeta, a ajuda inestimável que deram para que eles pudessem recriar sua civilização e desejava “Boa Viagem”. A voz não era a de Netus ou Hal, era diferente. O tempo todo eles sabiam de tudo. A ideia da nave de resgate, de três navegantes serem “descongelados”  com antecedência, tudo fora planejado pelos “homens” de Niord. Isto significa que eles estavam precisando de apenas 94 corpos e queriam que Leo, Martin e Saranova voltassem em segurança para a Terra. Fizeram o que tinham de fazer e, no final, foram elegantes. Sabiam que a Terra tinha de se conscientizar de que eles ainda tinham muito que aprender. Também estavam avisando que não era para voltar para Niord. Os três sobreviventes seriam seus mensageiros. De certa forma o trio se sentiu aliviado. Começaram os preparativos para a hibernação. Antes de ficarem inconscientes, porém, Leo comentou:
-Sou capaz de jurar que havia um certo tom de ironia na mensagem que acabamos de receber do pessoal de Niord. Acho que havia até um pouco de zombaria. Afinal eles são bem mais “humanos” do que pensávamos.
Martin respondeu:
- Acho que você tem razão. Realmente concordo com você.
Saranova não respondeu, ela já estava dormindo. Só poderia dar sua opinião dali a 32 anos...



 
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Flávio Cruz
Enviado por Flávio Cruz em 03/11/2020
Alterado em 09/11/2020


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