O Antônio estava contente. Era dia de retirar o dinheiro de sua aposentadoria. Poderia pagar umas contas e comprar algumas coisas de que estava precisando. Enquanto esperava a moça do caixa processar o que tinha de processar, olhava para as outras pessoas na fila. Muitos aposentados, como ele, ali esperando para receber. Ainda bem, não tinha ideia do que fazer sem aquele valor todo mês. Foi por isso um susto, quando a moça, sorridente, falou que, sentia muito, mas não podia efetuar o pagamento. Como assim? No sistema constava que ele tinha falecido há três semanas atrás e tudo fora suspenso. Havia um pouquinho só, dos dias daquele mês em que ele estava vivo. Infelizmente nem essa merreca não podia sair do banco, a não ser que fosse retirado pelos herdeiros. Mas será que aquela funcionária não podia ver que ele estava ali, vivinho da silva?
Passado o susto e a constatação do óbvio, que estava muito vivo, ele certamente protestou. A moça, com uma compaixão fingida, reafirmou que nada podia fazer. Para o sistema, ele estava morto. A cabeça da gente é gozada. Enquanto ela falava, Antônio se lembrou de que brincava de morto, quando era criança. Sempre achou a brincadeira besta, mas naquele instante ela era mais besta ainda. Ela não podia fazer nada, era apenas uma funcionária, ele tinha de ir até o Instituto. Ele foi. Lá, novamente, confirmaram seu estado funéreo, o que o deixou ainda mais deprimido e revoltado. Disseram que tinha de trazer um atestado de vida, uma prova médica e legal de que ele era um ser vivo. O seu médico imediatamente deu uma declaração, apesar de achar um absurdo, e encomendou um exame de DNA para cobrir o atestado. De certa forma, cobria a sua profissão, também. Juntou tudo, levou até a repartição.
A funcionária pediu para ele esperar. Falou com o chefe, que falou com o supervisor geral. Voltou e disse que estava tudo bem. Só faltava uma coisa. Ele precisava juntar o DNA do corpo que estava no cemitério para provar que os dois “batiam”. Ele ainda protestou dizendo que, se estava provando que estava vivo, como poderia haver um corpo enterrado? Ela deu um sorriso amarelo e falou que “sentia muito”. Sentia coisa nenhuma, ele falou em voz alta. Na verdade em vez de “coisa” ele falou outra palavra, começada com “b”, que eu não posso repetir.
Antônio pensou consigo: esses safados querem brincar comigo, eles vão ver só. Se estou morto, posso fazer o que eu quero. Foi até o supermercado, pegou tudo do bom e do melhor e saiu sem pagar. Não demorou muito, ele foi preso. Na polícia, o delegado estava um pouco surpreso de ver o Antônio por ali. Ele nem de longe parecia um ladrão. Interrogou o suspeito para fazer o Boletim de Ocorrência. O Antônio contou, com detalhes, a sua história. A autoridade coçou o queixo, pegou os documentos de identificação do Antônio e olhou no computador. É verdade, ele disse, o senhor faleceu no dia 27 de julho. Está vendo, disse animado o Antônio. O senhor não pode processar um morto.
O delegado consultou o computador mais um pouco, depois o Código Penal e finalmente deu a sua sentença, embora não fosse juiz. O senhor tem razão, mas tenho de usar a lógica. Uma pessoa não pode estar morta e viva ao mesmo tempo. Isto significa que o senhor está usando a identidade de uma outra pessoa, o que é um crime. Este - de falsa identidade - vai ser acrescentado ao do roubo ao supermercado.
Para dizer a verdade, era a única coisa que fazia um pouco de lógica até então. Além disso, na cadeia pelo menos ele tinha o que comer. Como dizia aquele famoso escritor, “Viver é complicado” ...
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Flávio Cruz
Enviado por Flávio Cruz em 14/04/2018
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