Flávio Cruz

Esse estranho mundo...

Textos

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O santo que levou um tiro

O doutor Isidoro era, de longe, a pessoa mais respeitada na cidadezinha. Era, até onde se sabe, a única coisa certa naquele lugar, cheio de histórias mal explicadas. Começou com o nome do lugar: Almirante. Na verdade, o pequeno grupo que organizou a comunidade, queria mesmo era fazer um mirante no Morro do Sapo. Daí viria o nome: “Mirante”. Alguns queriam que fosse “Cidade dos Mirantes”, mas daí o professor de Português ponderou que teria de haver mais de um. Deu na mesma, pois na hora de fazer o tal do “manifesto” para iniciar o movimento para a criação do município, o Lourival escreveu “Almirante” e, talvez para não o contrariar, assim ficou. Afinal de contas, seu pai era o maior dono de terras da região.
O santo padroeiro da cidade era o São Tarcísio. Foi ideia da beata Marinalva, viúva. Seu marido tinha sido um católico fervoroso e, quando criança, tinha cumprido o importante ofício de coroinha. E ela descobriu que o santo era o patrono desses, dos acólitos e dos cerimoniários. Como não havia nenhum outro santo ou santa para concorrer, o título vingou. Ademais, era um nome bonito. Quem fez a estátua foi o Cícero. Segundo ele, era uma cópia fiel de um desenho da Idade Média que retratava a figura. Desconfio que isso era conversa mole. Deve ter misturado um São Sebastião com um São Benedito. O Cícero era cheio de histórias. Além disso, o pároco, quando foi buscar o santo na oficina dele, viu duas telas com a imagem deles, servindo como modelo. Estava óbvio que ele se inspirou ali. Misturou que era para ninguém suspeitar. O padre desconfiou, mas achou melhor não julgar. Além disso, o que manda é a fé do povo.
Gente cheia de crenças, de contos contados nos cantos, de simpatias que não funcionavam. Um assunto recente era a saúde do Benevides. Alguns diziam que ele estava nas últimas, outros diziam que tinha uma doença incurável. Ele tinha uma certa idade, mas não era hora de ir ainda. Tinha muita dor, o coitado. O melhor mesmo era ele ir descansar no céu. Viver assim, para quê? O padre nunca tinha falado nada, mas todo o mundo dizia que ele tinha confessado ao homem de Deus que queria ir. Que rezassem ao Senhor para levá-lo dessa vida de sofrimentos. Vai se saber o que é verdade ou não, nessa terra perdida e esquecida de todos. Havia uma outra história, mas dessa ninguém sabia, só o vigário. Segredo de confissão. O Simão tinha uma arma, não se sabe onde tinha arrumado. Confessou para o homem de Deus que estava com umas ideias. Estava pensando em tirar a própria vida. Não sabia como pagar uma dívida enorme que tinha. Ia perder a casa para o Benevides. Esse nem estava pressionando. Não se sabe se era porque tinha um bom coração ou porque tinha tudo ali, garantido no papel, era só esperar. Além disso, com tanta dor que tinha, não tinha como se preocupar com isso, pelo menos agora.
Estava chegando o dia do santo, quinze de agosto. Ia ter procissão e tudo mais. Era um acontecimento importante e todo mundo estava se preparando. O andor já estava todo enfeitado, pronto para ser carregado na rua principal. Aquele dia chegou, como todos dias chegam. Dia de sol, graças a Deus. E lá vai o povo cantando, rezando, uma verdadeira comoção. Estavam chegando bem perto da casa do Simão, que não tinha ido para a cerimônia, ensimesmado que estava. Até que seria uma boa hora para realizar seu intento suicida. Acabar com tudo, de uma vez. O filho pequeno ele tinha mandado para a casa da irmã, não queria que visse a cena. Deixou tudo ali, arrumado, depois que o menino saiu. Em cima da mesa, o revólver carregado, uma bala só. Do outro lado da rua, morava o homem que tinha muita dor, o Benevides. Ninguém sabia, mas ele tinha melhorado muito. No coração tinha certeza de que, finalmente, iria sarar.  E, ninguém sabia, nem o Simão, ele ia fazer um grande gesto. Ia conversar com ele, perdoar-lhe a dívida. Não tinha herdeiros, tinha mais duas casas de aluguel, além da sua. Para que fazer um homem sofrer daquele jeito, um homem viúvo, com um filho pequeno? Tinha até rasgado os documentos, ia lhe devolver no dia seguinte. Se alguém quisesse, poderia até atribuir o milagre ao São Tarcísio. Um padroeiro com milagre fresquinho na cidade, isso seria muito bom.
A procissão passava bem em frente às duas casas, uma em cada lado da rua. O Benevides, bem melhor agora, tinha arrumado sua poltrona bem em frente à janela, queria ver o São Tarcísio passar. Não era homem de muita religião, mas pensou até em agradecer. Coração de gente que sofre muito, acaba amolecendo. O Simão, do outro lado da rua, tinha ido até o quarto se arrumar. Não queria que o achassem mal arrumado. Não bastava a sangueira toda que iam encontrar?
Esse mundo tem cada coisa! Que cena aquela! Um suicídio para acontecer, um homem que não conseguia se perdoar. Do outro lado um homem sem fé, quase curado, perdoando tudo, pensando num futuro melhor para todos. Coração cheio de alegria só de pensar na cara de alívio do Simão, quando dissesse que não queria nada, que a casa ficasse para seu rebento quando estivesse adulto. Começar tudo de novo. Entre os dois, o santo passando, gente rezando, o povo cantando. Era uma coreografia, preparada pelos homens, por homens que fazem seu destino, de um jeito ou de outro.
Mas quem disse que o destino estava de acordo? Eu já não tinha dito que a Cidade de Almirante era cheia de contos mal contados? Olha só o que aconteceu. O filho do Simão não encontrou a tia em casa, tinha saído, ela que nunca saía. Voltou, entrou em casa e viu aquele brinquedo estranho, nunca visto antes, sobre a mesa. Curioso, começou a mexer na arma, sem saber do perigo. Ia perguntar para o pai o que era aquilo. Sabia que o pai andava triste, aquilo era um bom motivo para puxar conversa.
Bem na hora em que a reza parou e ia começar um cântico entoada pelas “filhas de Maria”, ouviu-se um sibilo no meio da procissão. Não se sabe por que, todo mundo olhou para a estátua em cima do andor. O menino, sem querer, tinha disparado a arma? A Dona Tiquinha foi a primeira que viu. Um buraco bem no peito do santo. O primeiro milagre ela já anunciou. Aquilo era buraco de bala e a estátua não se despedaçou. Milagre legítimo, todo mundo podia ver. Mas não era só isso. Logo alguém notou o corpo do Benevides, inerte, na poltrona e deu um berro. Alvoroço total. Sob os protestos do padre, puseram o andor no chão. Em volta, alguns clamavam, gritavam. Milagre, milagre! Lá dentro, outros viram que um tiro certeiro tinha entrado no coração do Benevides. Logo alguém lembrou. São Tarcísio tinha, finalmente, atendido ao pedido do pobre homem. Ele queria descansar no paraíso. O tiro foi direto do coração do santo para o coração do sofredor. Mais um milagre legítimo. Viva Almirante, que nunca tinha visto algo assim. Cidade abençoada! Um tiro de arma que não existia, dado por homem nenhum! Quem podia duvidar? Acabando, assim de vez, com o sofrimento de um pobre homem! Nem uma alma só suspeitou que santo não dá tiro. Muito menos São Tarcísio, padroeiro que era de coroinha e tudo mais. Mas quem cala a boca do povo, quando ele quer falar?
Quando Simão saiu para a rua por causa da confusão, ficou sabendo de toda a história e sua cabeça começou a rodopiar. Era para ele morrer, quase o filho morreu, e quem morreu, de verdade, tinha sido o homem para quem ele devia. Ele precisava explicar para o povo aquela confusão. Ia tomar responsabilidade, aquilo não estava certo, não. Mas, e ele conseguia? O povo estava em transe, alucinado. O vigário talvez desconfiasse de alguma coisa. Mas com aquela fartura de fé, nem ele ousou se opor. Era melhor deixar assim, Deus tinha seus próprios caminhos e não era o caminho dos homens. Com o tempo, o próprio Simão passou a acreditar na história. A gente precisa acreditar em alguma coisa, não precisa?
Tinha uma coisa que eu não ia falar, mas resolvi botar para fora agora. Chega de tanta enganação. Sabe o doutor Isidoro? Ele tinha sido um enfermeiro de um grande hospital, numa cidade grande. Sempre quis ser médico, mas, você sabe, isso não é para qualquer um. Chegou um dia em que ele foi convidado para fazer um curso rápido de aperfeiçoamento na sua profissão, dentro da Faculdade de Medicina. Recebeu um diploma bonito, com o nome da Instituição. Embaixo dizia que ele tinha completado, com louvores, o “Curso de Aperfeiçoamento em Enfermagem”. Muita gente só olhava o nome da Faculdade de Medicina lá em cima e já deduzia que ele era um doutor. Gente que não o conhecia, é claro. Não vou contar toda a história, mas você já sabe... Acabou morando em Almirante onde ninguém o tinha visto antes. Médico lá não havia, muito menos hospital. E ele sabia que remédio dar, o que falar para quem sentia dor. Conhecia todos aqueles nomes que só os médicos sabem. Sabia tirar pressão e tudo mais. Para aquele povo, não fazia diferença nenhuma e ele cobrava muito pouco.
Eu não ia contar essa parte, mas sabe de uma coisa? Chega de história mal contada!



 
 
 
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Flávio Cruz
Enviado por Flávio Cruz em 13/07/2016
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