Eu não sei se era um céu só de brasileiros, mas o fato é que, quando o Chico chegou lá, viu que havia uma fila enorme. Ficou um pouco frustrado. Não estava atrás de coisa grátis ou de algum serviço do Governo para ficar ali, esperando. Tinha sido honesto a vida inteira, cumprido suas obrigações, feito caridade e tudo mais. Quis saber o que estava acontecendo. Para obter informação sobre a finalidade daquela fila, teve de entrar numa outra. Aquela, porém, era rápida e foi logo atendido. Nem acreditou no que estava ouvindo. Mesmo tendo feito tudo direitinho na Terra, precisava de um requerimento para entrar no paraíso. Tinha trazido um só por garantia, mas só por trazer, jamais imaginava que fosse precisar. Deu um suspiro de alívio - é bom ser prevenido - e começou a se encaminhar para o final da fila de verdade, aquela de admissão nos campos celestes. Mal deu o primeiro passo, o anjo deu uma informação adicional: A firma precisa estar reconhecida. O Chico, apesar de toda sua seriedade, quase soltou um palavrão. Ainda bem que segurou a tempo. Ali não ficaria nada bem. Já não entendia o porquê do tal requerimento, pois, se ali era o céu, deveriam saber de tudo. Agora, além disso reconhecer firma, era demais. Para quê? Ele estava ali, em pessoa, de que servia o reconhecimento de firma de alguém lá da Terra? E se o escrivão fosse um malvado qualquer? Fazia sentido precisar ter sua assinatura firmada por alguém, que, talvez no futuro fosse para o inferno, para outro poder ir para o céu? Isso seria sim, um paradoxo. Um paradoxo doutro mundo, de verdade. O Chico, porém, tinha sabedoria, deveria haver alguma razão. Talvez aquilo fosse um último teste de paciência. Tinha de haver uma explicação. Instalou-se pacientemente no seu lugar. A fila era imensa. Iria tentar convencer o anjo de aceitar o requerimento simples, só com a assinatura. Começou, então, a dar uma olhada em tudo para matar o tempo. Anjos apressados, voando por todos os lados, com papelada nas mãos. A burocracia tinha invadido as repartições celestiais. Era incrível. Percebeu, então, que havia muitos santos andando por ali. Reconheceu, de cara, o São Sebastião e o São Cristóvão. Ficou pensando como seria interessante ver o São Paulo. Afinal é de lá que ele tinha vindo. Pensou consigo mesmo, que até faria um comentário com ele: que não era nada fácil não pecar naquela cidade. Melhor não, talvez não ficasse bem. Poderia se ofender, afinal era a cidade do santo.
De repente, aconteceu algo extraordinário. Passou bem à sua frente, nada mais, nada menos, do que o São Francisco. Imaginem só, o seu santo de devoção. Tinha até seu nome e tudo mais. O que mais deixou o Chico surpreso e feliz, foi que o santo o reconheceu imediatamente. Logo lhe perguntou: “Chico, o que você está fazendo aqui?” Achou um pouco estranho, pois ele, como santo e permanente morador do céu, deveria saber. Imediatamente percebeu que era uma pergunta retórica. O São Francisco puxou-o pelo braço e falou que ele não precisava de requerimento e muito menos de firma, reconhecida ou não. Andaram cerca de cem jardas celestiais e num instante passaram pelos anjos que conferiam os requerimentos. Eles imediatamente os cumprimentaram e perceberam que ele estava com o santo e não precisava ser checado. O Chico achou que os primeiros da fila olharam para ele com um pouco de inveja. Talvez fosse só impressão, porém. Quem está num lugar assim, não costuma ter esses sentimentos.
Só daí é que o Chico teve ideia do que era estar no céu. Imediatamente percebeu tinha valido a pena ter sido correto o tempo todo. Pensou em perguntar ao santo como e quando tinha acontecido aquela história de requerimento com firma reconhecida, algo que não combinava com aquelas paisagens paradisíacas. Achou, no entanto, melhor ficar quieto. Já estava lá dentro mesmo e aquilo era infinita felicidade, não havia mais nada com o que se preocupar. Mas o Francisco, o santo, sabia o que ele estava pensando. Afinal de contas, ele tinha poderes celestiais. E respondeu, mesmo sem ele perguntar. Disse que estava tudo bem até há um tempo atrás. Daí alguns problemas começaram a aparecer. Não se sabe como, algumas almas que deveriam ter ido para o inferno, tinham conseguido se enfiar no purgatório e depois sorrateiramente tinham chegado às portas do paraíso. Um deles chegou a pôr um pé dentro. Ele pegou fogo imediatamente, que é o que acontece quando alguém demoníaco entra em contato com a atmosfera do Éden. A chance matemática de alguém assim entrar é menos do que zero. Mas para evitar dissabores, as autoridades divinas acharam que deveriam complicar um pouco, só para evitar a presença de indivíduos indesejados. Daí usaram o sistema brasileiro, que é o mais burocrático de todos e certamente iria dificultar os indesejáveis. Mesmo assim, andaram falsificando uns requerimentos, por isso foi acrescentado o pedido o reconhecimento de firma. Pois isso, todos sabem, é uma coisa difícil de se falsificar. No fundo, não haveria necessidade de nada disso, pois, como foi dito anteriormente, as almas daninhas entram em combustão em contato com a atmosfera da bem-aventurança. Ninguém, porém, estava a fim de ver esses espetáculos por aqui, disse o santo. O Chico mal acreditava no que estava ouvindo. Até ali, esse pessoal estava tentando “bagunçar”. Aposto que até tentaram suborno, pensou. O São Francisco captou seu pensamento e completou: “Pode uma coisa dessas, Chico? Pode? Até aqui no céu, esses “caras” estão tentando “aprontar”. O Chico riu. Gozado ver o santo falar desse jeito, igual à gente. E completou as palavras do seu interlocutor: “Pode?”
Deu um suspiro de alívio por estar ali por toda a eternidade e pensou consigo mesmo que a exigência do requerimento e da firma reconhecida não era tão má assim. Até que esses santos sabiam o que estavam fazendo. Quem diria, hein, firma reconhecida até lá em cima! Deu um largo e celestial sorriso e perdeu-se nas paradisíacas nuvens.
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A crônica acima não faz parte do livro abaixo
Essa vida da gente
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Flávio Cruz
Enviado por Flávio Cruz em 23/04/2015
Alterado em 24/04/2015 Copyright © 2015. Todos os direitos reservados. Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor. |