Flávio Cruz

Esse estranho mundo...

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Os onze astronautas de Voitmatu

A civilização humana tinha virado a página do quarto milênio e mal poderia ser reconhecida por alguém do século vinte e um. Nascimentos naturais tinham acabado há vários séculos e os controlados eram muito poucos e, na prática, o resultado de uma verdadeira obra de arte genética. As pessoas viviam mais de duzentos anos e, ainda assim, morriam mais por opção do que por outra causa. Tinha ficado óbvio para o ser humano que ninguém queria viver para sempre.
A Ciência tinha rompido barreiras muito além da imaginação. Por volta do século vinte e seis, finalmente o homem tinha conseguido decifrar  por completo, ou assim pensava, o enigma do tempo, as outras dimensões escondidas na nossa realidade e o que ante se chamava “buraco de minhoca”. Baseado nessas novas armas da Ciência, as Grandes Confederações da Terra construíram uma espécie de portal. Era um ponto onde se encontravam três enormes “jatos” de partículas vindo de três diferentes pontos do Sistema Solar: a Terra, a Lua e Marte. Isto só tinha sido possível quando dois séculos antes, a Grande Confederação do Norte anunciou ao mundo o que todos, de certa forma, já sabiam. Tinham conseguido dominar a antimatéria, conseguindo retirar dela fonte inesgotável de energia.
Pela primeira vez, um humano poderia ser enviado para uma outra galáxia, quase instantaneamente. Nas primeiras décadas, porém, houve muita decepção. Muitos astronautas partiam, mas não voltavam. Havia algo que os cientistas ainda não sabiam, não dominavam. No ano de 2623, entretanto, aconteceu. Cinco astronautas voltaram de uma missão na Galáxia de Andrômeda. Foi terrível, entretanto, pois apenas seus esqueletos retornaram. Como se eles tivessem envelhecido repentinamente, mais de duzentos anos. Apesar disso, era uma grande esperança. As viagens espaciais normais continuavam intensas e havia colônias em diversos planetas do Sistema Solar. A exploração do Cosmos usando o portal, no entanto, foi suspensa usando pessoas. Usavam-se robôs e animais.  O conhecimento desta tecnologia aumentou radicalmente e, justamente, quando tudo parecia sob controle, algo ainda mais extraordinário aconteceu. Era o ano de 2823, curiosamente 200 anos depois que os esqueletos dos cinco cosmonautas voltaram. Uma outra equipe de três homens também voltou. Estavam vivos, mas mesmo com todo o avanço da Genética e da Medicina, eles nunca foram recuperados completamente. Havia algo ao mesmo tempo sinistro e fascinante com a equação tempo espaço que os cientistas não conseguiam controlar. Aquele momento foi decisivo. Os dados obtidos pela volta da nave “Centurion”, mais todo o conhecimento obtido nos últimos 200 anos, parecia ter dado um controle quase completo sobre a maneira de como fazer uma viagem segura de ida e volta através do portal.
Desta data, até o começo do quarto milênio, inúmeras viagens foram feitas com total sucesso. Havia, é claro, o que se chamava o “Ponto Z”. Não havia uma explicação para ter se escolhido tal nome. E o “Ponto Z” era exatamente isso: mesmo conhecendo todas as variáveis, todos os passos de uma viagem interestelar, podia sempre haver um ponto onde alguma coisa diferente poderia ocorrer. Era como se a sabedoria cósmica estivesse alertando os seres humanos de que eles não eram deuses, que havia um limite.
Essa ideia foi reforçada quando uma sonda de reconhecimento, que também usava o portal, voltou com informações sobre o imenso Planeta Voitmatu. Pelo menos 17 vezes maior que a Terra, ele tinha características absolutamente inimagináveis e inverossímeis. Ao invés de servir como sinal de alerta, aquilo incitou ainda mais a curiosidade dos homens da Ciência.
Voitmatu era obviamente habitado. Seus seres, aparentemente, não usavam corpos. Eles usavam qualquer elemento da natureza do planeta para agir, ou executar o que quisessem ou necessitassem. Era como se eles fossem “inteligência pura”. Um corpo, para eles, seria uma limitação. Seu avanço científico e tecnológico foi calculado pelo complexo de Inteligência Artificial central como pelo menos centenas de milhares de anos à frente.
Nos últimos anos, praticamente todas as viagens através do portal eram feitas com o uso de “avatares”. Robôs quase humanos, inclusive com estrutura parcialmente orgânica, eram enviados nas naves. Os “astronautas” ficavam aqui mesmo, na Terra, na parte central de uma área, que há mais de mil anos atrás tinha se chamado Oklahoma e, outras vezes, em uma enorme construção onde antes tinha sido o deserto de Saara.  Durante o tempo todo da viagem, os astronautas ficavam ligados totalmente, corpo e mente, com seus avatares. Não podiam ser desconectados nem por uma fração de segundo, pois todo o trabalho seria perdido. Era como se eles estivessem, de verdade, no planeta de destino. Sentiam cem por cento do que os avatares sentiam, viam e tocavam tudo que eles viam e tocavam. Se algo catastrófico acontecia, eles eram automaticamente “desligados” de seus avatares. A não ser por eventuais danos psicológicos, facilmente corrigíveis, nada acontecia a eles.
Mesmo nessa época de glória e esplendor da raça humana, o fator econômico tinha de ser levado em consideração. Uma exploração para Voitmatu poderia ser feita, mas tomaria recursos de outras áreas. Demorou mais de trinta anos, até que a viagem para Voitmatu, na galáxia NGC 6503, fosse autorizada. Foi quando um novo Conselho tomou posse,
Durante a espera para que fosse dado sinal verde para o evento, os pesquisadores conseguiram aperfeiçoar ainda mais os avatares. Sabiam que estariam diante de um desafio fora dos limites do conhecimento humano. Estariam diante de uma inteligência insólita. Certamente, esperavam eles, haveria uma espécie de “adaptador” para conectar tão díspares conteúdos. Um contato simples, direto, como eles sempre fizeram, era improvável, todos sabiam. A própria natureza das duas inteligências, da Terra e a de Voitmatu, eram intrinsecamente diferentes.
Foram designados os melhores 11 cosmonautas e os respectivos melhores avatares. Foi também ordenada a construção de máquinas de apoio de excepcional capacidade.
No dia 3 de fevereiro de 3035 foi ativado o grande portal, também reconstruído de forma especial para a missão. A enorme e sofisticada nave com equipamentos poderosíssimos foi se aproximando do ponto de entrada. Onze avatares em seus postos. No grande complexo de Oklahoma, os onze homens especialmente escolhidos para serem os receptores dos verdadeiros viajantes, os avatares, já estavam isolados na enorme cápsula especialmente construída para tal. Uma grande equipe de técnicos e especialistas posicionava-se atrás de telas enormes e cilindros holográficos. Na exata fração de segundo em que o portal foi ativado, podia se notar na face dos astronautas uma expressão que era uma mistura de espanto, surpresa e êxtase.
Passaram-se alguns minutos antes que as máquinas confirmassem que o “transporte” tinha se realizado. Os dados começaram a ser recebidos. No entanto, eles não faziam sentido. Era como se eles estivessem obedecendo a uma outra lógica, a outras leis da Natureza. Algum tempo depois, podia se notar que os rostos dos onze astronautas estavam ficando brancos. Depois, o branco foi se transformando em uma espécie de luminosidade. Depois de algum tempo, só havia uma luz intensa dentro da cápsula, nada podia ser visto e os dados não podiam ser captados.
Finalmente silêncio e suspensão de qualquer movimento. A primeira visão de dentro da cápsula invadiu novamente todas as telas e todos os cilindros holográficos dos controladores da missão. Não havia ninguém lá dentro. Os onze astronautas de Voitmatu haviam desaparecido completamente, como se a luz os tivesse engolido. Por outro lado, todas as máquinas confirmavam a chegada da nave. O estado dos avatares e seus correspondentes terrestres constava como “ausente”. Os únicos dados que eles tinham eram o momento da chegada da nave em Voitmatu, a distância e outros assim. Depois do primeiro contato com a “inteligência” do outro planeta, nada mais foi registrado. Até então, sempre se soube que era impossível qualquer ação reversa, ou seja, o planeta visitado atuando sobre os astronautas aqui na Terra. Esse era, na verdade, o princípio básico e o motivo óbvio de se usarem avatares.

Nunca mais houve notícias ou dados vindos de Voitmatu. Vários técnicos do projeto disseram ter recebido mensagens telepáticas advertindo que a experiência não deveria ser repetida, mas ninguém deu crédito a eles. O incidente desafiava a lógica, a razão e a Ciência. Talvez o ser humano precisasse evoluir mais algumas centenas de milhares de anos para entender o ocorrido. Ironicamente, estávamos num estágio inferior de avanço científico. Relativamente inferior. De repente, o homem que se julgava nos píncaros da Ciência e da Tecnologia, viu-se humildemente sentado num banco de estudante, tentando entender um outro lado do universo, que ele não conhecia.

 
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Flávio Cruz
Enviado por Flávio Cruz em 06/03/2015
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