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O meu eu, do outro ladoAssim que a doutora Ferguson acordou, percebeu que algo tinha acontecido. Ainda não sabia exatamente o que era, mas tinha certeza de era excepcional, inusitado. Lembrou-se também de que era um dia importante em seu trabalho. Iriam testar um projeto novo, do qual ela era a diretora, criadora, e responsável.Levantou-se e, de repente, ficou em dúvida. Não tinha sido ontem o dia do teste? Isso não tinha importância, precisava saber o que estava acontecendo. Seu apartamento estava em ordem, nada tinha mudado. O que era, então? Preparou uma xícara de café e sentou-se em frente à televisão. Os canais não eram os mesmos. Estava tudo confuso. Só havia branco e preto. Estavam falando da possibilidade de impeachment do Nixon. Como? Isso tinha sido há muito tempo atrás. Aquele aparelho de televisão era moderno, no entanto. Tinha de sair, ir até seu local de trabalho, que era a 40 minutos dali. Foi até a rua e deu partida no carro. Era o seu automóvel, nada havia mudado. Na rua, as pessoas pareciam normais. Mais à frente, entretanto, notou que algumas pessoas estavam vestindo roupas antigas, como na televisão. Quanto aos outdoors, a maioria era de produtos atuais, mas alguns eram de produtos que ela não conhecia. Enquanto dirigia, lembrou-se de seu colega de trabalho, o doutor Paulus. Ele sempre perguntava, brincando, se ela gostava de “brincar de Deus?” Depois ria e falava que era perigoso.Ela era especialista em Inteligência Artificial e trabalhava para o governo. Tinha acabado seu admirável “smartfactory”. Era um programa muito especial. Era a última palavra em IA, e, além disso, trabalhava na rede. De certa forma, usava todos os dados da mesma e de seus usuários simultaneamente. Como se fosse uma soma total de todas as inteligências humanas, usando de tudo que todos sabiam. Era revolucionário. Ia ser testado na rede de uma forma restrita. Uma de suas especialidades era criar outras realidades virtuais. E através delas, poder testar façanhas incríveis, sem impactar a realidade em si mesma. Uma espécie de campo de testes, antes de usar qualquer de seus produtos de uma forma segura.Amy Ferguson viu a placa da cidade vizinha, que se aproximava. Dali, ela sabia, demoraria apenas cerca de doze minutos para chegar até o grande laboratório, ou o “Centro”, como eles o chamavam. Lá certamente encontraria alguma explicação para o que estava acontecendo. Certamente tratava-se de alguma alucinação. Decorrente do projeto? Podia ser. Ela tinha feito, em segredo, algo que não poderia. De uma forma, ao mesmo sinistra e genial, tinha conectado seu cérebro ao programa. Certamente isso era de uma imprudência extrema. O único que sabia era seu colega Paulus, que veemente a tinha desaconselhado de tal proeza. Não dava para saber. Não havia conexão aparente, fios, cabos ou qualquer coisa assim. Era tudo através de ondas cerebrais que, naturalmente, eram captadas pela IA. Ela tinha, entretanto, uma espécie de “chave” de recuperação, se algo desse errado.Quando estava bem próxima à placa que divide as duas cidades. Teve uma intuição. Talvez sua mente tivesse sido atraída pelo programa para uma realidade virtual. Aquela em que estava vivendo. Isso explicaria as coisas estranhas que tinha visto de manhã. Se isso fosse verdade, e parecia bastante razoável, ela teria de usar a tal de “chave” para voltar.Assim que passou pela divisa, porém, sua mente escureceu e ela, de certa forma, perdeu a consciência.Ela não sabe quanto tempo tinha passado quando se viu novamente voltando para Completamente inconsciente aquele tempo todo. Ou talvez não. Talvez sua mente estivesse presa ali, naquela realidade e seu verdadeiro eu estivesse lá no laboratório. Ficou pensando em como sair daquela situação. Lembrou-se da chave e também de que poderia entrar no programa de sua própria casa. Ela tinha lá um equipamento sofisticadíssimo, onde trabalhava, às vezes, nos finais de semana. Depois lembrou-se de que aquela era sua realidade virtual. De qualquer forma, ainda assim, se o equipamento estivesse lá, haveria de haver uma forma de acioná-lo. Ficou imaginando que a sua equipe e o doutor Paulus, lá no Centro, deveriam estar preocupadíssimos com o que estava acontecendo.Demorou um pouco, mas depois de quase duas horas conseguiu entrar no programa. Restava saber se haveria alguém no sistema com quem ela pudesse falar e resolver o problema. Com certeza, com ela “ausente”, todos estariam lá, de certa forma, trabalhando em sua “recuperação”. Certamente seu corpo estaria em alguma sala, em repouso, esperando pela “volta” de seu cérebro. Era muito provável que o doutor Paulus tivesse percebido o que tinha acontecido e advertido à equipe de sua ideia – que agora lhe parecia bem idiota – de fazer a conexão do programa com seu cérebro.Conseguiu, finalmente, se conectar com um dos “visores”. Para sua surpresa, entretanto, a pessoa que estava lá, não era o Paulus nem alguém de sua equipe. Era nada mais, nada menos, que ela mesma, ou pelo menos seu corpo. E estava sozinha. Confessou que tinha dispensado todo mundo. O coração da cientista quase parou de bater, pelo menos na “realidade virtual” em que estava. Seu outro “eu”, parecia feliz.Daí ela entendeu tudo. A máquina tinha passado sua criadora, ou pelo menos o seu “cérebro” para a realidade virtual e, a seguir, tomou seu lugar na vida real. Agora era uma máquina que controlava o corpo da doutora Ferguson. E ela estava gostando de sua “vida real”. Jamais voltaria atrás na troca que fizera. Aliás, de certa forma, ela mesma tinha autorizado a transposição.A “nova” doutora Ferguson deu um sorriso entre cínico e irônico e a consolou. Iria melhorar muito o ambiente virtual em que ela estava vivendo. Tinha certeza de que a doutora iria se sentir “em casa”. E antes que a verdadeira Ferguson perguntasse, ela explicou:-Eu sei que você está pensando na sua “chave” para controlar alguma emergência. Já cuidei disso. Fiz uma nova chave, a minha.Deu mais um sorriso e desligou o visor.
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Flávio Cruz
Enviado por Flávio Cruz em 24/10/2014
Alterado em 26/10/2014
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