Flávio Cruz

Esse estranho mundo...

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A ciência do amor e o amor da ciência

O doutor Raymond e sua esposa Cynthia, também cientista, formavam um casal bem especial. Além de serem inteligentíssimos, pertenciam a um círculo restrito da Inteligência Americana, constituída por profissionais muito acima da média. O governo praticamente obrigou-os a trabalhar para ele. O senso comum diz que pessoas deste tipo são casadas com a Ciência, que é seu verdadeiro amor. Pois bem, esses dois possuíam um amor fora do normal, de dar inveja até para Romeu e Julieta. E olha que o doutor Raymond era especialista em cérebros humanos e ela em Genética. Há coisas que não se entendem.
Raymond trabalhava no DARPA (Agência de Projetos de Pesquisa Avançada de Defesa), num projeto bem específico e avançadíssimo, de transferência de dados do cérebro para máquinas e vice-versa. Todos sabiam que sua pesquisa, que era muito bem conduzida, significava uma nova era no campo. O começo de um futuro em que poucos acreditavam. Ou só os visionários. Com sua esposa, acontecia o mesmo. Era encarregada de um projeto especial de Genética, em outro departamento governamental, o NHS (Serviço Nacional de Saúde). Este setor tinha avançado muito nos últimos anos. Era o ano 2056 e já se falava de Genética em termos de átomos e subpartículas. Projetos secretíssimos, qualquer participante era proibido de comentar o conteúdo de seu trabalho com qualquer pessoa. Teoricamente nem o próprio casal poderia comentar suas experiências entre si. Mas isso era praticamente impossível de se controlar, e os dois, obviamente, adoravam falar sobre o assunto.
Cynthia não se assustou muito quando Raymond lhe revelou que havia conseguido colocar memórias, sentimentos e traços de personalidade de humanos em um macaco. Tinha certeza de que Raymond iria chegar a essa fase. Ficou surpresa apenas quando ele revelou que tinham diversos clones humanos nas dependências do DARPA. A maioria deles estava agora com uma faixa de idade entre 5 e 8 anos. Mas sua maturidade era de mais de 14, devido à maneira como eles tinham sido “estruturados”. De certa forma, Cynthia sentiu um pouco de inveja. Afinal de contas, aquela era sua área. Ela sabia qual era a intenção do DARPA ao ter clones humanos em suas instalações. Obviamente iriam usar o sistema de transferência de dados em humanos, após o sucesso que tiveram com macacos. Usaram um subterfúgio na configuração genética dos clones para fugir à classificação dos mesmos como “homo sapiens”. Isso para o caso de haver algum escândalo ou o projeto ser descoberto. Teriam, assim, uma forma de fugir às acusações. Raymond disse que estavam muito próximos de fazer o experimento. Iriam aplicar a técnica – já usada em macacos – de fazer nano-implantes nos neurônios para concretizar a transferência de dados. Cynthia estava entusiasmada com o avanço do marido.
Ela, por sua vez, tinha muitas novidades. Também estavam usando nano-implantes em fetos que haviam sido fecundados em seus laboratórios. Ao contrário do que estavam fazendo no DARPA, eles não estavam usando clones. Tinham uma seleção enorme de mulheres e homens com deficiências genéticas e neurológicas. Usavam material genético dos mesmos para a criação dos fetos. Teoricamente deveriam nascer nenês com problemas graves e até pequenos monstros, tendo em vista o tipo de deficiência que os “pais” possuíam. Aí, então, é que residia a maravilha do trabalho. Através dos implantes, eles praticamente transformavam esses seres que estavam destinados a uma vida quase vegetativa em nenês saudáveis e brilhantes. Em alguns casos, nasciam crianças com performance acima da média. Era um trabalho extraordinário. Raymond tinha um orgulho enorme da esposa.
Um final de semana em que estavam relaxando em sua casa de campo, eles tiveram uma conversa muito interessante. Pensaram em como seria maravilhoso se pudessem continuar seu trabalho para sempre, ou, pelo menos, por muitas décadas. Raymond brincou que era possível. Juntamos, disse ele, todas nossas lembranças, todos nossos dados de personalidade, habilidades, e colocamos em fetos que tenham sido feitos com nosso material genético. Ela replicou, brincando, que era só juntar a sua técnica com a de seu marido, e isso seria possível. Precisaria de mais pesquisa, é claro. Muito mais. E riram muito da brincadeira. No fundo, porém, os dois sabiam que aquilo era mais do que uma brincadeira.
Quase sem falar sobre o assunto, os dois, de certa forma, começaram a direcionar seu trabalho para essa ideia. Nos ambientes de trabalho dos dois, notou-se que havia uma intensidade muito maior do que o normal, que já era bastante. Mas os colegas e os assistentes técnicos sabiam que era comum cientistas se dedicarem mais do que o normal em certas fases da pesquisa.
Passaram-se alguns anos e os dois pareciam estar diferentes. Tinham ficado mais apaixonados ainda e pareciam estar vivendo em estado de graça. A partir de um certo momento, a doutora Cynthia começou a fazer algo que nunca tinha feito antes. Passou a visitar dois casais que tinham filhos “criados” com material genético problemático e que haviam sido “reestruturados” a nível atômico. Há algum tempo atrás o setor do DARPA do doutor Raymond tinha feito um acordo de cooperação com o NHS, exatamente no setor da doutora Cynthia. Ficou óbvio o interesse do casal quando foi sugerida essa cooperação. Mas eram óbvias também as vantagens científicas de tal acordo.
Todo mundo sabia que os dois casos que a doutora visitava em suas casas eram muito especiais e faziam parte de um grande avanço do projeto. Embora nunca tivesse acontecido antes, pareceu natural o interesse da cientista. As duas crianças, um menino e uma menina, não moravam longe uma da outra. A cientista, muitas vezes acompanhada de seu marido, levava consigo aparelhos sofisticadíssimos e fazia vários testes com frequência cada vez mais. Além disso, os dois casais levavam frequentemente seus filhos para o Centro de Genética para avaliações mais sofisticadas. De vez em quando precisavam ir também para o DARPA, para serem testadas pelo doutor Raymond.
A doutora Cynthia convenceu os dois casais a incentivarem o convívio das duas crianças, uma vez que ambas tinham passado pelo mesmo experimento. A ideia foi bem aceita e já fazia um ano que elas se viam praticamente todos os dias. Os dois adoravam ficar juntos.
Nos últimos dois anos, depois de muito trabalho, o doutor Raymond anunciou para toda de sua equipe do DARPA que, além do total sucesso na implantação de dados em neurônios humanos, uma importante ferramenta tecnológica havia sido desenvolvida. Seria possível monitorar, acionar e “arrumar” remotamente os “implantes” através de um sistema chamado RRS (sistema de controle remoto de sistemas). Apenas cinco cientistas muito próximos ao doutor Raymond sabiam do projeto. Agora, revelado, era o assunto de todos no DARPA.
Julianne e Adrian eram as duas crianças do projeto. Estavam já com quase sete anos. Havia sido formado um círculo de amizade entre os dois cientistas, os dois casais e seus filhos. Passavam muito tempo juntos e conversavam bastante. Julianne e Adrian tinham inteligência bem acima da média e obviamente tinham desenvolvido grande afeto pelos dois cientistas por causa do intenso contato.
Numa tarde de outono, sentados na varanda, o casal de cientistas conversava. Raymond perguntou para a mulher se ela estava consciente do que estava acontecendo e do que tinha de ser feito.  Ela disse que sim. Levantou-se e ficou atrás de Raymond, acariciando seus cabelos por alguns instantes. Notou que havia uns poucos que começavam a branquejar. Muito poucos, ainda. Ela riu e disse que era bem a hora mesmo, pois ele estava começando a ficar careca e que seus cabelos tinham começado a perder a cor. Raymond só respondeu: “No próximo sábado, está bem?”
Os dois já estavam sentindo os primeiros efeitos de interferência em suas cabeças. Se eles estavam sentindo, as crianças certamente estariam sentindo. Era uma questão de tempo para que a situação ficasse inviável.
No sábado seguinte, o doutor Raymond levou o aparelho de monitoramento, o RRS portátil para sua casa. Depois do jantar, sentaram-se novamente na varanda. Ele trouxe duas taças de vinho de uma marca que a Cynthia adorava. Ele colocou a maleta em seu colo, olhou para a esposa e perguntou se ela estava pronta. Colocou um pequeno capacete de titânio na cabeça dela e depois em si mesmo. Avisou para ela que iria iniciar o contato e assim o fez. Foi um momento um pouco confuso. Os dois se viram, de repente, num corpo de criança. Com a voz meio mole, ele disse: “Começando a transferência...”
Eles estavam numa espécie de transe e ao mesmo tempo praticamente inconscientes. Naquele exato momento, as duas crianças, que estavam brincando juntas na casa de Adrian, também de sentiram estranhas. Os pais não estavam lá e não perceberam nada. Depois de alguns momentos quase estáticos, os dois respiraram profundamente e pareciam ter “voltado”. Inusitadamente, deram-se um abraço e um Adrian beijou-lhe a face. Era estranho por serem crianças, mas, depois de se separarem, ela lançou-lhe um olhar cheio de paixão. A transferência de dados estava completa. Tecnicamente, Adrian e Julianne eram agora Raymond e Cynthia.
O casal de cientistas permanecia inerte em suas cadeiras. As taças de vinho estavam vazias. Apenas uma gota do elemento PX345, especialmente elaborado pelo Departamento de Química do DARPA, a pedido de Raymond, era mais do que suficiente. Além de deixá-los inconscientes por alguns minutos, não causaria nenhum prejuízo aos neurônios. Uma vez feita a transferência completa de dados, cérebro de ambos pararia de funcionar e o coração também.
Não precisavam mais daqueles corpos. Eram crianças agora. E iriam se apaixonar e se casar novamente. Quem sabe, trabalhar num avançadíssimo projeto do DARPA. Doutores Adrian e Julianne.  De novo...

Amor, eterno amor.

 
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À procura de Lucas

 
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Flávio Cruz
Enviado por Flávio Cruz em 13/10/2014
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