Acerto de contas
Você certamente ouviu falar daquele túnel, cheio de luz, pelo qual as pessoas passam quando estão morrendo. Os poucos que voltaram, falam dessa linda experiência. Claro, quem não quer ver um pedacinho da eternidade sem ter de morrer? Pois bem, aquele homem, cheio de fé, líder religioso de um grande grupo de fiéis, tinha acabado de passar por ele e estava lá, numa espécie de limbo, esperando pelo resultado de seu balanço de vida. Estava deitado, embora espíritos não se deitem, pelo menos é o que acho. Tudo que via era uma intensa luz branca. Eles ouvia sons também. Antes eram sussurros, agora eram frase claras. E ele sabia que eram anjos falando. Logo, logo, percebeu até o que eles estavam falando. Melhor, contando. Não estavam contando histórias celestiais, não. Estavam contando valores. Rapidamente, nossa recém-chegada alma percebeu do que se tratava. Aqueles valores todos, com descrição pormenorizada de datas e circunstâncias, eram, nada mais, nada menos, os dízimos que haviam sido dados por seus seguidores. E eram muitos valores, era de se assustar. Altos porque havia grandes doadores, altos porque havia muitos doadores, embora com valores pequenos. Eram muitos também porque foram feitos durante muito tempo. Estranhou, o nosso amigo, que os anjos precisassem contar. Já não tinham tudo em mãos, tudo pronto? Estava ficando incomodado, com aqueles valores subindo mais e mais. Por uns breves segundos, chegou a sentir um certo orgulho. Será que havia um “Guiness” para isso? Devia ser uma espécie de campeão, lá no céu, nessa repartição de arrecadação. Vejam só como nossa cabeça é gozada. Pensou na palavra “repartição”, logo depois veio a palavra repartir, que , sem dúvida, é muito importante nessas áreas celestiais. Ficou um pouco apreensivo, pois não se lembrava muito bem de ter repartido muito. Não teve tempo de se preocupar muito, pois uma preocupação muito maior, começou. Outros dois anjos, que antes não estavam falando, começaram a falar. A primeira coisa que ele ouviu de suas bocas angélicas, foi um “Oh”. E isso ele ouviu, quando os anjos que estavam contando, passaram o valor total das oferendas que ele arrecadara durante toda sua vida nessa profissão. Quando ele mesmo ouviu o total, esboçou um “Puxa”, mas sua voz não saiu, uma vez que agora ele era espírito e espíritos não falam. Os dois novos anjos que haviam chegado, tinham como obrigação ver o que ele tinha feito com aquele dinheiro todo. Ver se foi bem administrado. Quantos pratos de comida comprou para os pobres, quantas peças de roupa distribuiu para quem estava com frio. Enfim, a quantos necessitados ajudou. Eles passaram um tempo sem falar nada, o que era preocupante. Finalmente, um deles falou: “É isso!”. Normalmente anjos não têm dúvidas, mas o valor era tão baixo – das coisas que o homem investiu no bem – que o outro perguntou: “Tem certeza?”. Não sei se o primeiro ficou ofendido com as dúvidas sobre sua contabilidade, mas o fato é que nem respondeu. A única coisa que falou era que precisavam chamar o supervisor. Acho que eles quiseram dizer “Arcanjo”, mas a palavra que usaram foi supervisor. Só mesmo indo para o céu para saber esses detalhes. Por falar em detalhes, a essa altura, o réu, quero dizer a alma que acabara de chegar, estava suando frio, embora digam que espíritos não suem.Posso garantir, entretanto, que ele estava suando e bastante. Assim que o anjo supervisor chegou, deu uma olhada rápida nos números. Ficou furioso por fazerem com que ele perdesse seu precioso tempo angelical, o que também era estranho pois quem tem toda a eternidade pela frente, não precisa se preocupar com isso. Era óbvio o que tinha de ser feito com alguém que faz mau uso do dinheiro que é destinado aos céus.Ele devia mesmo estar irritado com o coletor de dízimos. Falou qualquer coisa como “ele não deveria nem ter passado pelo túnel”. E mandou que seu subordinados tomassem as providências necessárias para que o nosso amigo fosse enviado para seu devido lugar. E aí ouviu-se um trovão. Foi então que ele pensou que já estava no inferno. Que nada, era no meio da noite, ele tinha tido um pesadelo. Era só isso. Acho que isso ocorreu porque, antes de dormir, ele leu aquela parte da bíblia que fala que é mais fácil um camelo passar num buraco de agulha, do que um rico ir para o céu. Ler essas passagens fortes antes do sono, só pode dar nisso: pesadelo. O dia seguinte, era dia de Domingo. Dia especial. Dia de sermão longo. Dia inspiracional. O sonho tinha sido um aviso, ele tinha de agir de maneira apropriada. Sua vida precisava mudar. Embora aquele não tivesse sido o túnel da eternidade, era o túnel da advertência, o túnel do bom senso, o túnel da verdade. Precisava se arrepender de seus caminhos, ser humilde, endireitar sua vida. Ele começou a falar de seu sonho para a plateia. De como tivera aquela experiência “pos-mortem”- essa ele tinha aprendido há pouco tempo – e que era tempo de mudança. Explicou que, o que imprta, é a eternidade. Que dinheiro e bens materiais não importam. Que precisamos nos desfazer deles. E ele se empolgou. Chegou quase a gritar, falar de pessoas que foram para o inferno por causa do apego a coisas do mundo. Os fiéis todos ficaram comovidos e muitos deram tudo que tinham no bolso ou fizeram cheque pelo valor de seu saldo bancário. Foi a maior arrecadação da história daquela comunidade. Durante o resto do domingo, aquela mesma alma que tinha voltado do céu – pelo menos no sonho - e que agora estava num corpo vil, regozijou-se com a a manifestação monetária dos seguidores. Na segunda, ele nem se lembrou mais do pesadelo. A sua contabilidade divina continuou péssima: muitas “entradas”, nenhuma saída. Claro, estou falando de saídas para caridade, pessoas necessitadas, etc. Outras saídas, para coisas não tão divinas, continuaram como sempre. O medo tinha passado. Como disse, foi apenas um sonho ruim. Blogs do autor: Flávio Cruz
Enviado por Flávio Cruz em 05/08/2013
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