A casa de meu avô
A casa de meu avô era grande, muito grande. Tinha muitos quartos, muitas salas. Muita gente, muitos tios e tias, muitos primos e primas e meu avô e minha avó. Eu era muito criança e a minha idade era a idade da inocência, a primeira inocência, a primitiva. E o casarão tinha muitos porões, porões cheios de coisas. Um porão para cada cômodo da casa, em cima.
Os objetos que havia lá, nos porões, eram estranhos, pelo menos para mim. Eu os pegava, um a um, e os admirava. Uma porcelana pintada, uma garrafa colorida, uma caixinha de madeira, uma coisa que eu não entendia. Jornais de não sei quando, com letras antigas, notícias antigas, fotos antigas de gente antiga. Havia muitas coisas que eu não entendia.
E os livros? Havia tantos que não dava para contar. Eram livros gozados, tinham capas com gente desenhada, quase se beijando, outas de mãos dadas. Romances antigos, talvez pudorados, não sei pois não sabia ainda ler. Histórias que não acontecem mais ou que agora parecem sem graça ou que acontecem de outro jeito. Era só um mistério só, grande, cheio de mistérios pequenos.
E havia os livros de Allan Kardec, depois aprendi. Antes mesmo de saber, porém, eu sabia que havia segredos ali. Folheava um a um, com uma mistura de medo e curiosidade. Queria e não queria saber o que estava escrito, olhava as figuras e não entendia. Eu não sabia ainda da vida, da eternidade e muito menos o que as pessoas pensavam dela. Não sabia o que as pessoas discutiam sobre o pós-vida, nem sabia ainda da primeira vida, dos seus acertos e desacertos.
Tudo isso aconteceu em Santana do Parnaíba, terra dos bandeirantes, terra da represa Edgard de Sousa, que invadiu nossas casas para trazer luz para o povo. É assim que se fazem as coisas.
Naquela época meu avô estava doente. Acho que era o coração. Estava num quarto acima, na cama. Algum tempo depois, já em Perus, fiquei sabendo, a notícia veio molhada com as lágrimas de minha mãe, que ele havia falecido. Soluçando, ela contava para alguém que ouviram sua mão bater na madeira da cama. Era a mão desfalecida, caindo. A imagem ficou.
Muitas vezes, depois disso, fiquei meditando. Será que ele se reencarnou? Será que o que acontece com a gente depois da morte é aquilo que a gente acredita? Se isso for assim, acho que ele está no corpo de um jovem, bonito, inteligente, andando por aí. Talvez um jovem rebelde, com muitas causas para lutar. De qualquer jeito, uma pessoa boa, isso eu sei. Se não fosse assim, como dele poderia ter nascido uma mãe, como a minha mãe, um anjo de primeira linha?
Luis Maximiliano, esse era seu nome. Nome bonito, cheio de força. E ele acreditava nos espíritos, e isso era bom, é bom acreditar em alguma coisa. Só sinto falta de poder ter tido contato com ele. Nunca tive uma chance. Ele poderia ter me explicado sobre as capas das revistas, sobre as figuras dos livros de Allan Kardec, sobre as notícias dos jornais antigos. Explicar para que serviam aqueles objetos estranhos, sobre o que havia nas caixinhas de madeira. Sobre os mistérios do mundo. Sua versão, pelo menos. Que pena.
Espero que eu possa contar coisas para meus netos. Só coisa bonita, explicar o pouco que eu sei. Não sei se eles vão achar graça ou interesse, como eu teria achado, vindo de meu avô. Não faz mal, mesmo que eu seja um avô antigo, quero poder estar com eles. Só estar, só isso, já vai ser muito, muito, bom.
Flávio Cruz
Enviado por Flávio Cruz em 17/07/2013
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