Flávio Cruz

Esse estranho mundo...

Textos

A segunda vida do Ribeiro (reeditado)


Lá estava o Ribeiro, mexendo e remexendo na papelada em uma sala na parte sul do hospital. Inventara umas histórias, umas desculpas, e conseguiu finalmente a autorização. Teve sorte pois não se passaram nem duas horas e achou o que queria. E agora estava olhando, quase em choque, para uma foto. Não podia ser, mas era. Estava tentando se convencer de que estava enganado. Não havia como negar, a foto...
Não vamos nos precipitar. Para entender a cena, temos de voltar alguns meses no tempo. Ribeiro era um enfermeiro do Hospital Santa Clara. Era um bom lugar  para se trabalhar, muito antigo e tradicional na pequena cidade. A instituição tinha mais de oitenta anos. Ribeiro, logo de imediato, foi bem aceito entre os colegas. Todos o chamavam para ajudar aqui e ali, era um batalhador, funcionário dedicado e inteligente, além de um bom amigo de todos. Já estava há uns três meses no hospital quando teve a primeira da série de experiências  estranhas pelas quais passou.

Um dia sentiu um tontura danada quando estava passando por uma sala que tinha escrito “Arquivo”em sua porta. Não foi só isso, sentiu também uma força danada impulsionando-o a entrar. Assim o fez. Lá dentro, devagarinho, foi voltando ao normal. Daí, quando acordou, notou que seu uniforme era de outra cor. Branco. Nunca usava essa cor no trabalho. Mas era um uniforme sim. Saiu da sala, voltou para o corredor. De repente, começou a olhar para as pessoas e notou que as conhecia e até sabia seus nomes. Não eram, entretanto, os seus colegas de serviço. As paredes tinham outra cor, os móveis e os aparelhos todos pareciam muito antigos. Aos poucos fois e esquecendo do “outro hospital”. Na verdade ele não saía de sua mente, estava lá, só que distante, como uma lembrança. Parecia um sonho que tinha tido, uma recordação. De repente viu, no meio do corredor, uma enfermeira agitada, acenando. Correu para lá e foi atrás dela, que entrou numa sala. Um paciente parecia ter morrido. Imediatamente fez massagem cardíaca, esmurrou seu peito e, como por milagre, seu coração começou a bater novamente. A enfermeira agradeceu, e o irmão do doente, que estava no quarto, abraçou-o chorando. Deu mais umas voltas pelo hospital, fez uma tarefas que lhe cabiam e, de repente, lá estava ele passando pela “sala do arquivo” novamente. Aconteceu exatamente a mesma coisa, sentiu tontura, um impulso incontrolável de entrar. Aos poucos volta ao normal e já está com seu uniforme verde outra vez. Sai, começa a reconhecer as pessoas, as primeiras que já conhecia antes. Aos poucos as imagens do velho hospital vão sumindo, sem desaparecer totalmente.

E isso aconteceu inúmeras vezes, durante meses,  com pequenas alterações. O que havia de comum, sempre, é que ele sempre acabava ajudando alguém. Nem sempre era salvando alguém. Às vezes consolava um companheiro que estava passando por um problema difícil, às vezes “dando uma dica” importante para um médico que estava com uma dúvida sobre um paciente. Era como se cada vez que “voltava” era para cumprir uma missão. Nunca ficava muito tempo lá , mas era sempre uma experiência viva, real. Com o repetir das “viagens” a lembrança das cenas, das pessoas, das instalações ficava mais viva em sua mente. Conseguia se lembrar. Foi então que começou a prestar atencão numas fotos em quadros pendurados na parede do prédio principal do hospital. Não passava muito por lá, por isso demorou um pouco para ele notar. Mas assim que ele olhou com cuidado, pela primeira vez, teve certeza. Aquelas fotos das instalações hospitalares de 40 anos atrás eram exatamente o que ele via toda vez que entrava  naquela sala e repetia a experiência. Normalmente isso o deixaria louco, faria com que pensasse que estava com alguma doença mental. Entretanto, como as coisas foram acontecendo aos poucos, ela pareciam quase normais, faziam parte da sua vida atual.Um dia, porém, algo lhe ocorreu. Será que o hospital tinha fotos de funcionários antigos, da época para a qual ele estava sempre voltando? Se tivesse, com certeza ele os iria reconhecer, pois tinha os semblantes  vivos na memória. 
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Por isso, como dizia no começo desta história,não havia como negar...a foto era da Margarida, encarregada das enfermeiras. Ela tinha um rosto inconfundível. E mais: a  Fernanda, a Francisca, a Marília, estava todo mundo lá. Começou a ter calafrios. Agora era outra história, as coisas estavam ali, documentadas. De repente, lembrou-se do óbvio. Que tal achar a própria foto? Lembrou-se de que seu rosto era praticamente o mesmo nas duas épocas. As únicas duas diferenças eram o corte de cabelo e uma marca de nascimento na face esquerda. Ele só tinha essa marca na sua versão antiga. Remexeu, remexeu e depois de cinco minutos lá estava, em outra caixa, sua foto. Dizia: Sebastião Ribeiro, 27 anos, nascido no Rio de Janeiro. Escrito a mão, num canto, estava “Ribeirinho” . O nome do Ribeirinho, de agora, era Afonso Ribeiro Júnior.

Pesquisou, procurou, entrevistou todo mundo na família. Ninguém nunca ouvira falar de Sebastião Ribeiro. Noi entanto conseguiu falar com duas pessoas de bastante idade, que trabalharam no hospital há décadas atrás e elas se lembravam do “Ribeirinho”. Viera de outra cidade, não sabiam qual, e morrera jovem, aos 31 anos. Trabalhara apenas 4 anos no local. Era sozinho, não tinha família.
Era um nistério e tanto. Sem saída, sem solução. Na cidade não havia outros registros, nada. Você sabe, antigamente, essa história de registros, identificação, não era coisa muito séria.

O “Ribeirinho” de agora, Afonso,na verdade, o “Ribeiro”, quase enlouqueceu de tanto pensar no assunto. Nunca contou nada para ninguém, alguém poderia achar que estava ficando louco. Quando investigava sobre o assunto, inventava uma desculpa qualquer. Ele, como seu outro “eu” também faleceu. Agora nem sequer temos alguém para entrevistar, perguntar. Assim terminou a história de Afonso Ribeiro Júnior, o Ribeirinho de antes, o Ribeiro de agora...

 

 
Flávio Cruz
Enviado por Flávio Cruz em 09/04/2013
Alterado em 09/04/2013


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