Serelepe
Não tenho certeza, mas acho que “seu” Armando daqui a alguns anos iria passar para a quarta idade, se é que ela existe. Entretanto, ele não sabia disso pois continuava firme e saudável. Não queria incomodar ninguém e por isso morava sozinho. Sua filha sempre arrumava uma desculpa e dava um jeito de ir conferir. Um dia ela decidiu dar de presente um fox paulistinha para o pai. Era um presente de aniversário e mais uma desculpa para ela poder vê-lo com mais frequência. Agora, com o Serelepe ia ficar mais fácil pois todos sabiam que ela amava cachorrinhos. O “seu” Armando, como era fácil de se prever, se apaixonou pelo Serelepe. Ficavam juntos a maior parte do tempo e uma boa parte dele o danadinho passava no colo de seu dono. Eles “conversavam” bastante mas não precisariam pois eles se entendiam sem se”falar”. O tempo foi passando e, cruel, foi judiando do “seu” Armando. Mas este não era de se entregar, continuou vivendo. Tinha algumas dores, não podia fazer algumas coisas, mas tinha saúde suficiente para continuar morando sozinho. Mais tempo se passou, e os dois ficaram mais velhinhos, bem mais velhinhos. A filha quase brigou para que eles fossem morar com ela, mas nada. Era orgulhoso e teimoso. Andava com dificuldade, mas era capaz de fazer praticamente tudo que fosse necessário. Um dia, sentado na varanda, o “seu” Armando parecia mais triste que o normal e também estava muito pensativo. O Serelepe era muito vivo e percebeu que havia uma tristeza no ar. Por isso estava meio irriquieto e mudou de posição três vezes no colo do seu dono. De repente o “seu” Armando falou: -Serelepe, nós vamos fazer assim. Eu vou primeiro, porque se você ficar sozinho, a minha filha vem aqui e pega você para morar com ela. Ela vai cuidar de você melhor do que eu, você sabe. Além disso, você também está velhinho e precisa de cuidados. Se eu ficar sozinho, vou ficar muito triste sem você e não vou querer sair daqui, nem que minha filha insista. Fica combinado assim, então. Acho que o Serelepe não gostou muito daquela conversa. Podia se notar que estava preocupado. Ele se mexeu muito à noite, certamente não dormiu bem. Um dia mais se foi e o “seu” Armando não falou nada. Passou o dia inteiro triste e com o Serelepe no colo. No dia seguinte, ele tomou café da manhã, alimentou o Serelepe e foi para a varanda. O cãozinho pulou no colo e percebeu que o seu dono não estava muito bem. Parece que ele adivinhou os pensamentos do Serelepe pois falou assim para ele: -Parece que não vamos ter problemas, Serelepe. Afinal de contas, acho que vou mesmo antes de você. Se eu for mesmo, não quero ir para o hospital, quero “ir” daqui mesmo. E você, na hora certa, vai morar com minha filha, eu falei, ela vai cuidar bem de você. Depois de falar mais um pouco, abraçou o Serelepe, deu um beijo em sua cabeça e aparentemente dormiu. Não sei o que o Serelepe pensou, mas ficou muito assustado. Dali a pouco saiu do colo e foi para sua cama. Mais tarde o “seu” Armando acordou, sentiu a falta do Serelepe e foi conferir. Desconfiou do jeito que ele estava dormindo, um medo interior se apossou dele. Ajoelhou-se perto da cama e conferiu os sinais vitais do Serelepe. Ele não respirava mais, havia morrido. Imediatamente o “seu” Armando percebeu o que havia acontecido: -Serelepe, seu safado! Você achou que eu ia morrer e resolveu ir antes para não ficar sozinho. Malandro, não foi isso que nós combinamos! A filha ajudou a enterrar o probrezinho. Depois disso o “seu” Armando teve de ir à força para o médico. Na volta não teve chance e foi praticamente “sequestrado” para a casa da filha. Por mais que tentassem alegrá-lo, não havia jeito, ficou lá, encostado, pensando no Serelepe. Remungava baixinho: -Danadinho, você me enganou. Alguns dias depois, o “seu” Armando, sem ficar doente, nem nada, faleceu. Como o médico disse, morreu de velhice mesmo, sem doença. O coração simplesmente parou de bater. A filha sabia muito bem o que havia acontecido. Com certeza, ele foi atrás do Serelepe para tirar satisfação a respeito do acordo não cumprido. Blogs do autor: Flávio Cruz
Enviado por Flávio Cruz em 10/02/2013
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