Como bebia o “Ceará”...
O “Ceará”, não o estado, mas sim o pedreiro que trabalhava na construção de minha casa, estava sempre em estado de embriaguez, e esse era o único estado que conhecia, além de São Paulo e o seu próprio estado, o Ceará. Os olhos estavam sempre estatelados, congelados, olhando para o vazio, um vazio que só ele conhecia. Baixinho e simpático, a bebedeira nunca se manifestava em forma de agressão. Como ele conseguia trabalhar? Não sei, ele trabalhava, era até diligente. Respeitoso, ele era sim senhor, nunca respondia, tudo estava certo, o senhor tem razão, sim senhor.
Sabe como era o Brasil antes? Planos e mais planos econômicos, uma loucura? Você se lembra de uma vez quando as passagens aéreas ficaram tão baratas que era mais econômico ir de avião do que de ônibus? Pois bem, vimos em nosso coração que era certo dar de presente uma passagem de avião para o “Ceará”, para ele ir para lá, ver o seu povo, sua gente, sua família. O nome da cidade, eu não me lembro, mas era bem um nome de cidade do Ceará.
E assim foi explicado para ele que poderia rever sua família, três ou quatro horas de voo, uma moleza. A passagem foi emitida. O nome nem sei mais, mas era qualquer coisa de Silva, qualquer coisa de José, qualquer coisa assim. Nem sei se o “Ceará” conseguiu entender a amplitude do presente, uma passagem aérea, quem me dera! Ele quase esboçou um sorriso, quando lhe contei, não sei se ele entendeu.
O “Ceará” morava lá mesmo na casa em construção, nos fundos, num quarto provisório feito por ele mesmo. Ultimamente todo mundo, e principalmente o pessoal da construção, fazia de tudo para que ele não bebesse. Escondiam a pinga. Em vez de dinheiro lhe davam a comida e guardavam o resto numa poupança, tudo para ele não beber. Ainda assim, ele dava um jeito. Na falta da cachaça, bebia até álcool puro, o coitado. Vício danado, não tinha jeito.
Claro, alguém tinha de levá-lo para o aeroporto e lá fui eu. Arrumei uma pequena valise para ele levar seus pertences, quem sabe um presentinho para os familiares. Que nada, no dia escolhido tudo que tinha era um saquinho plástico, o documento de identidade dentro, mais nada. Era tudo que tinha. Assim era o “Ceará”.
Foi apresentado no no balcão do aeroporto e embarcado. Ficou os dias marcados e voltou. Fui buscá-lo. Voltou com um sorriso distante, uma alegria indefinida e seu saquinho plástico na mão.
O “Ceará” é, de longe, a pessoa mais simples que já conheci em minha vida. Fiquei imaginando como se portou no avião, se entendeu tudo que acontecia, as instruções de segurança, os avisos do piloto. Nem posso imaginar o que aconteceu com ele lá no Ceará, o que seus parentes acharam da história. Só sei que o “Ceará” voltou com o mesmo sorriso perdido, se instalou no seu lugar de sempre e continuou a trabalhar. A trabalhar e a beber.
Flávio Cruz
Enviado por Flávio Cruz em 19/01/2013
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