Flávio Cruz

Esse estranho mundo...

Textos

Uma questão de percepção

 
Serena estava cheia da vida. Justo ela que foi sempre cheia de vida. Nada dava certo. Ultimamente então...Um problema atrás do outro. Começou lá no trabalho. O chefe começou a dar em cima dela. Nada de sutileza. Afinal, ele era o chefe, e foi direto ao assunto. Ela precisava do emprego mas mesmo assim acabou com a graça do safado na hora e também foi direto ao assunto. Sem sutileza também, falou o que tinha de falar. Pediu as contas e foi para casa chorando. Tinha amigos no emprego, gostava do que fazia e aquele idiota tinha de estragar tudo. Daí para a frente foi só tristeza, as dívidas começaram a fazer fila. Desistiu do curso na faculdade e por tabela da “paquera” que ela tinha lá. De qualquer forma, tinha descoberto há pouco tempo que o fulano era noivo de uma moça do interior e as coisas certamente não terminariam bem. Nunca terminam. Na mesma época descobriu que tinha um pequeno tumor no seio. O médico disse que com quase certeza era benigno, mas do jeito que as coisas estavam indo...não sei não. Desgraça era o que não faltava e você sabe que elas nunca vêm sozinhas. O caso de Serena não era diferente. Em cima disso tudo vieram várias pequenas desgraças, que, de tão pequenas nem vale a pena falar. Quer dizer, para Serena, elas não eram nada pequenas. Você sabe como é o velho ditado “pimenta nos olhos dos outros é refresco”?
A partir de um certo momento ela começou a pensar em besteiras. Sabe, essa história de “não vale mais a pena”,  “que tipo de vida é essa? “ e assim por diante. Seria bom se acontecesse alguma coisa, quem sabe um acidente. Não queria sofrer, tinha de ser rápido. Talvez tomar uns 20 comprimidos de uma vez...Começaria dormindo, não sofreria nada. Deixaria um bilhetinho para as amigas e outro para a família. O pai tinha saído de casa quando ela ainda era pequena, não faria diferença nenhuma. A mãe, entretanto...Coitada, não iria ser fácil. No fim a dor passa, sempre passa. A angústia no seu peito aumentou muito naqueles dias. Não tinha vontade de comer, começou a tomar muito vinho. Ficava enfiada em casa, não falava com ninguém. As pessoas tinham até medo de falar com ela por telefone, tal era a aflição que ela carregava nas palavras. Ela era um poço de angústia.
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Naquela tarde de domingo, o desespero começou a aumentar. Aquela ideia de a segunda estar chegando e você saber que vai ficar em casa sem fazer nada, sem trabalhar, era algo insuportável. E o destino, você sabe, não tem dó. Imagina o que mais aconteceu.  Ela não tinha olhado as cartas que recebera na sexta. Na verdade há duas semanas não olhava mais nada. Não sei por que razão de repente bateu os olhos na carta de um advogado. Leu por cima, uma história de devolver o carro, processo, etc...Resolveu então que seria  aquela noite. Com algumas taças de vinho ela tomaria coragem. Separou os comprimidos, um montão, tinha de funcionar. Começou a beber. E bebeu, bebeu...Não sei se pegou no sono ou desmaiou, o que foi bom, pois assim não engoliu o remédio suicida.
Eram nove horas da manhã quando  acordou com o celular tocando. Não ia atender, mas por um impulso que não se pode explicar, falou um “alô” quase sumido. Do outro lado era um tal de Arnaldo. Era o novo chefe que estava substituindo o anterior. Entendeu vagamente que a firma estava pedindo desculpas pelo comportamento do funcionário. Se ela quisesse voltar seria bem vinda, e além disso iriam pagar o tempo que ela ficou afastada. Se quisesse, poderia começar no dia seguinte. Iria ter um aumento e tudo mais.
Foi assim que a Serena recuperou sua serenidade. Assim, sem mais nem menos. Os outros problemas, grandes e pequenos, fáceis e difíceis, foram indo embora do jeito que vieram: um atrás do outro, em fila. Assim é a vida, não dê muito valor paras as desgraças. Também não se entusiasme demais com as coisas boas: elas vêm e vão. Tudo que acontece tem importância relativa. O que realmente vale é a percepção que você tem dos fatos e não eles em si mesmos. Resumindo, tente ser mais otimista. Quem precisa de pessimismo? Afinal com ou sem ele, qualquer dia desses podemos ser atropelados. Brincadeira. Quer dizer, tudo é possível...

Flávio Cruz
Enviado por Flávio Cruz em 30/12/2012


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