Flávio Cruz

Esse estranho mundo...

Textos

A Dona Rosa, o “seu” Benedito e a garrafa de cerveja

 
A Dona Rosa e o “seu” Benedito eram pessoas “de cor”. Na época eu não entendia direito o que era isso. Achava que talvez fosse um elogio, qualquer coisa assim. Era muito pequeno, ainda não sabia das maldades humanas, dos eufemismos. O que eu sabia era que a casa da Dona Rosa era especial. Sempre que tinha uma chance eu corria para lá. Acho que  eram os doces que ela fazia: cocada, doce de abóbora e muitos outros. A casa era muito pequena: dois cômodos. Um era a cozinha, outro era o quarto. A funções da sala eram exercidas ora no quarto, ora na cozinha. O chão era de terra. Mas era uma coisa incrível. Era um chão batido, muito batido, lisinho, lisinho...E a Dona Rosa encerava o chão de terra  com um capricho tal que, se você não prestasse muita atenção, iria achar que era cerâmica ou um daqueles pisos feitos de cimento colorido. Era demais. Essa é  a primeira coisa de que me lembro. A outra foi uma coisa que o “seu” Benedito fez. De domingo ele estava sempre por ali. Ficava fora de casa, sentado, para dar espaço para a Dona Rosa preparar o almoço. Se por um lado ela era magrinha e usava óculos, o “seu” Benedito tinha uma barriga um pouco acima da média. Talvez fosse a cerveja. Ele era uma simpatia e tinha um bigode que chamava  a atenção. Vez ou outra ele me pedia para ir até o bar comprar uma Antárctica para ele. Dava o dinheiro certinho, coitado, porque tenho certeza de que não tinha muito. Acho que esse era o único capricho que ele tinha. Naquele dia fui correndo até o bar. O dono remexeu nos blocos de gelo – acho que naquela época não havia geladeira, não – e trouxe a danadinha tinindo de gelada, para a tona. 
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Paguei e voltei correndo. No caminho levei um escorregão, caí, e quebrei a cerveja. Fiquei com o gargalo na mão, assustado. Não por causa do tombo mas porque o “seu” Benedito iria ficar privado da “preciosidade” do domingo. Fiquei pensando na tristeza que ia ser para ele, que gostava tanto da geladinha. Fui voltando, preocupado, pensando como iria explicar a tragédia para ele. Ele era sempre bem humorado mas você sabe, a cerveja é uma coisa sagrada. Demorei quanto pude e finalmente cheguei lá segurando só aquele gargalo fatídico. Talvez eu achasse que precisava de uma prova da tragédia. Tentei falar alguma coisa quando vi o olhar cerrado do “seu” Benedito. Estava pronto para a bronca. Fiquei aliviado quando percebi que a única coisa que o preocupava era se eu tinha me machucado. Examinou meu braço, minhas mãos. Gaguejei alguma coisa mas ele disse que o importante era que, graças a Deus, eu estava bem. Apesar do que aconteceu eu me senti muito bem naquele dia. O “seu” Benedito era um bom homem. Um “gentleman”. Eu sabia que ele não tinha dinheiro para outra bebida naquele dia e talvez nem na semana seguinte. Ele passou a mão pela minha cabeça e me perguntou de novo se eu não estava machucado.
Nunca mais me esqueci da beleza daquele casal e da cerveja do Benedito. Para mim eles tinham uma cor muito bonita. Acho que era  por isso que diziam que eles eram “de cor".
Flávio Cruz
Enviado por Flávio Cruz em 29/11/2012


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