Flávio Cruz

Esse estranho mundo...

Textos

A  Vingança de Jodi


A Inteligência Artificial controlava tudo. Não havia mais governos a não ser em quatro ou cinco pontos da Terra. Eram culturas muito atrasadas e ninguém se preocupava com elas. Quando chegasse a hora, era só anexá-las. As grandes corporações controlavam tudo. As reuniões que faziam eram apenas em casos de política a ser seguida ou em caso de emergência extrema. A grande maioria das decisões era feita pelas máquinas, assim como sua execução. Obviamente as médias e pequenas decisões também eram feitas pelas máquinas. Só uma setor importante da sociedade ficou fora das decisões da I.A.: a Justiça.  Essa válvula de escape era necessária para o cidadão. Ele precisava sentir que, quando algo importante em sua vida estivesse em perigo, ele poderia recorrer aos velhos padrões da sabedoria humana. Obviamente decisões técnicas não iam para a Justiça, apenas casos grandes e sensíveis que dependiam de juízos de valor ou casos que envolvessem a própria I.A.
O caso de uso indevido de informação que ocorrera na Divisão Nordeste dos EUA, que compreendia o que era antigamente a Nova Inglaterra e mais alguns estados em direção ao centro do país, foi um caso desses. Obviamente Washington DC e toda a área ao redor pertencia a esta área.
O mundo todo era dividido em áreas controladas por inteligências regionais e que depois se integravam numa rede maior, o Grande Centro de Decisões, ou em termos populares, o Computador Central. Poucas pessoas sabiam o que significava a palavra “computador”, do começo da era tecnológica, mas o nome ficou.  As pessoas davam nomes para os “computadores” regionais, como se eles fossem pessoas. Para o “computador” da área nordeste de que falamos anteriormente foi dado o nome de Jodi. Pois bem, Jodi estava sendo acusado de atividades ilícitas. E o Sistema Judiciário, ainda muito parecido com o do século 21, foi acionado. O julgamento foi iniciado com um juiz de carne e osso, jurados e tudo mais. Era uma atração, todos queriam ver. Era um dos poucos espetáculos que ainda restavam. A acusação era simples e objetiva. Jodi usou a incrível quantidade de informação que tinha sobre as pessoas, processou-as e deixou que uma das agências da Administração tivesse acesso a elas. O sistema já tinha acesso a quase tudo que se pode imaginar de um indivíduo. Os dados de que tratava o processo eram de categoria “E”, explicitamente pessoais  e que deviam ser usadas pela I.A. apenas para a melhoria do próprio indivíduo ou em caso de ele estar sofrendo algum perigo. Essa era a última e única barreira entre o indivíduo e a máquina e muitas pessoas ainda se importavam muito com isso. Foi uma decisão tomada por Jodi e que claramente era contra as normas. A acusação foi apresentada pelo promotor diante de um juiz de verdade – um ser humano, carne e osso – e diante de um juri, tudo  à moda antiga. O julgamento era uma sensação, todos estavam comentando.
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O promotor lamentou que não era possível ir atrás dos seres humanos responsáveis por Jodi, uma vez que o mesmo era a consequência de décadas de aprimoramento de algo que já era quase perfeito. A criação de Jodi se devia  a incontáveis cientistas ao longo do tempo. Não havia um ou alguns humanos especificamente responsáveis por Jodi. E daí ele veio com um argumento que deixou todos perplexos.Não tinha  Jodi uma capacidade mais do que humana de tomar decisões? Não estavam inseridas neles todos os parâmetros possíveis do comportamento humano para que ele os usasse com bom senso, justiça e sabedoria? Ele, mais ainda do que os próprios humanos, tinha dados mais do que suficientes para agir e tomar decisões com retidão. Todos o viam como gente e assim deveria ser julgado. A plateia local e todos que participavam do julgamento através da Rede ficaram perplexos. Sim,  Jodi poderia ser julgado como um ser humano. Os jurados foram orientados para que reunissem e tomassem a decisão. Foram duas horas de expectativa. Finalmente eles vieram com o veredicto  que condenava Jodi. A sentença foi lida pelo juiz Stent: Jodi seria desabilitado de algumas de suas funções, especialmente decisões sobre o uso de informações categoria “E” – todos ficaram perplexos – só voltaria a usá-las depois que os cientistas conseguissem reprogramá-lo de acordo.
Não havia mais jornais escritos, mas todos os outros tipos de mídia ficaram superlotados com comentários, reportagens, opiniões, declarações e entrevistas. Havia uma espécie de sentimento de vingança no ar, algo que há muito não se via, em relação a I.A.
Naquela noite o juiz Stent foi orgulhoso para casa, orgulhoso de ser juiz. Merecia um descanso. Ao dar os comandos para os serviços de sua casa, tais como a temperatura, a refeição que queria que seu robô servisse, pensou, com certa ironia, que tudo aquilo, em última análise era coordenado pelo Jodi.
No dia seguinte de manhã, logo cedo, havia repórteres a frente de sua casa esperando por entrevistas. Depois de quase uma hora de espera – o juiz não saíra no horário normal – um dos repórteres que tinha certa intimidade com o juiz, ligou para ele. Não houve resposta. Ele chamou o serviço de segurança, que checou tudo em sua casa, e disse que tudo estava normal e provavelmente o juiz tomara uma decisão pessoal de não ir trabalhar e ficar em casa.
Embora os computadores indicassem que não havia nada de anormal, depois de quatro horas sem sinal do juiz, a imprensa pressionou o setor de segurança para verificar se havia algo de errado. E havia. Quando abriram a casa à força, encontraram o juiz Stent morto em sua casa. Estava congelado. Jodi abaixou a temperatura interior a níveis de congelamento. Inibiu o robô para que não prestasse nenhum serviço e trancou todas as saídas, além de bloquear toda a comunicação com o exterior. O pobre juiz foi encontrado morto, junto a porta principal, completamente congelado, tentando fugir de casa, tentando fugir de Jodi.
Jodi havia se vingado da condenação e do juiz. Mais do que isso, ele havia provado que, definitivamente, era mais humano do que qualquer outro.
Flávio Cruz
Enviado por Flávio Cruz em 20/11/2012


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