Flávio Cruz

Esse estranho mundo...

Textos


O Leilão

 
Sanz sempre se interessou pelas coisas dos séculos 20 e 21. Achava interessante como as pessoas viveram nessa época, como pensavam. Como eram suas músicas, seus costumes. Ele tinha especial curiosidade sobre o conceito de “família”. A ideia havia desaparecido completamente no início do século 22. A necessidade de controlar a densidade demográfica mais o avanço enorme da ciência genética acabaram entregando o controle dos nascimentos ao Estado, mais precisamente à Administração Central. Não havia mulheres grávidas desde cerca do ano 2110 A.D. As pessoas viviam muito mais e a existência com um certo conforto só era possível com um controle rígido dos nascimentos. Além disso as concepções via laboratório eram extremamente seguras e garantiam um corpo extremamente saudável e eficiente. A ideia de família foi substituída pelo conceito de grupos genéticos. Cada grupo “tinha direito” a um certo número de concepções, o que, além de ser justo, garantia uma diversidade importante para o ser humano.  Os novos seres recebiam um código, ao invés de um nome, que ao mesmo tempo era um indicador da “família genética”  a qual pertenciam. Mais tarde Sanz consultara dados da época e descobrira que esse nome significava “sagrado”. Achou que a ideia combinava com seu interesse por essa fase da civilização humana. Tinha interesse principalmente por tudo que se referia ao final do século 20 e começo do século 21. Para ele, esta época é que deu o “click”para tudo que ele via agora, 300 anos depois. Sempre  que podia, adquiria objetos antigos desse período, que eram raríssimos. Os leilões eram obviamente eletrônicos, exceto por um que se chamava “Newdoyle”. Esses faziam questão de fazer tudo à moda antiga, de verdade. Era um lugar físico, não virtual, onde as pessoas se sentavam e o leiloeiro batia o martelo e tudo mais. Era uma coisa incrível. A decoração era uma réplica exata da época.
Nesse dia, lá estava Sanz para participar de um leilão que iria colocar à disposição dos participantes o que antigamente se chamava de “celulares”,  “laptops”, muito dos quais ainda funcionavam. Claro, eram necessárias certas adaptações, pois o sistema de energia era absolutamente diferente então. Nesse dia havia também um objeto muito especial: uma unidade de DVR. Sanz havia pesquisado muito sobre o assunto. Esse aparelho “gravava” imagens e sons em uns discos especialmente designados para isso e depois tinha a capacidade de tocá-los novamente. Seria possível fazer funcioná-lo, de acordo com as instruções do leilão, mas seria extremamente custoso e, além disso, haveria necessidade de se obter um disco da época, o que talvez não fosse tão difícil assim em locais especiais.
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Sanz estava bastante excitado com o evento e foi um dos primeiros a chegar. Conversou um pouco com os outros participantes. Ficou sabendo de um dos participantes, que havia um local, relativamente grande, onde antigamente era a Europa, em que se fazia uma simulação de toda a tecnologia antiga e onde – pasmem – poderia se usar os tais dos “celulares” e outros aparelhos da época do mesmo jeito que antigamente. Era uma novidade para todos os colecionadores. Todo mundo estava falando da novidade. Sanz achou interessante mas estava  interessado era mesmo no DVR. As pessoas não usavam mais dinheiro. Cada pessoa tinha “pontos” e o valor dos mesmos , ou seja, sua “cotação” dependia muito do papel do indivíduo na comunidade. Para os mais “uteis”, os pontos valiam mais. A cotação de Sanz era muito boa.
Não foi muito difícil para ele, pois quase não havia concorrência para o item. Ainda assim quando o leiloeiro bateu o velho e estranho martelo de madeira no balcão, Sanz sentiu um alívio e uma excitação que poucas vezes sentira antes. Ele era o proprietário do objeto.
Em casa, começou a examinar o seu “troféu”.  Colocou-o no simulador de energia da época e, para sua surpresa, um disco foi ejetado.Os organizadores do leilão não perceberam que ele estava ali. Sanz cuidadodamente colocou–o no DVR. E aí vieram as imagens, Uma família com duas crianças, junto a um lago. As carinhas iam e vinham, faziam caretas. O pai segura as duas pelas mãos e depois ameaçava, brincando, jogá-las na água. A esposa sorri, se aproxima e dá-lhe um beijo na face. Em outra cena estão sentados à mesa, comendo. Passam a comida de um para outro. Em outro momento a mãe estende o garfo para a filha.
Sanz havia estudado como funcionavam as “famílias” mas aquilo era uma amostra real, viva. Não é possível se descrever o que ele sentia. Uma coisa, porém, é certa. Ele havia criado, de repente, uma ligação com aquela família, apesar dos 300 anos que os separavam. De repente criou uma esperança no coração. Mandou o disco e o DVR para os especialistas  em recuperação e identificação de DNA.
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Alguns dias depois vieram os resultados. Após recuperação de fragmentos de DNA do disco e do DVR, eles conseguiram levantar dados nos grupos genéticos pelos últimos trezentos anos. E aí a surpesa: as pessoas daquela fmília eram tataravós de seus bisavós, geneticamente falando. Ele mal podia acreditar. Será que foi por isso que ele sentiu aquela ligação?
Ninguém mais acreditava em milagres ou em sobrenatural. Restou a explicação da coincidência. Mas Sanz não se importava com isso. Sentia uma felicidade grande, enorme. Poderíamos dizer que ela se alastrava por – 300 anos ou mais. Quanto à “coincidência”, poderíamos dizer – já que ninguém mais acreditava em milagre – que era um problema da ciência de estatísticas.De qualquer forma, uma coincidência milagrosa!

Flávio Cruz
Enviado por Flávio Cruz em 09/11/2012


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