Flávio Cruz

Esse estranho mundo...

Textos

Céu  Verde
“Só há uma diferença entre um louco e eu.
O louco pensa que é sadio. Eu sei que sou louco.”
 Salvador Dali
 
Eu gosto do Dr. Ross, acho que é um homem decente, correto. Ele não duvida de mim, ou pelo menos não fala. Nunca faz cara de incrédulo quando eu conto minhas histórias. Ainda bem que ultimamente ele tem tratado de mim mais do que o Dr.Reinard. O Dr. Reinard foi o meu primeiro médico. Dizem que ele é um grande psiquiatra, mas eu acho que ele trabalha para o governo. Desde o começo ele sempre falou que as coisas que falo são coisas imaginadas, que não aconteceram. Diz que é uma doença. Ele sabe tanto quanto eu que as coisas que eu falo realmente aconteceram. Diz que não, acho que é pago para isso.
Eu nunca vou esquecer as coisas que vi. Eles estão me dando cada vez mais remédios. Quando posso, seguro os comprimidos na boca. Quando o enfermeiro vai embora, cuspo fora. Eu sei o que eles querem, querem me deixar dopado, querem fritar meu cérebro. Daí ninguém vai acreditar em mim mesmo, é isso o que eles querem. Acho que o Dr. Ross não pertence ao esquema. Eu vi tudo, é como se tivesse acontecido ontem.  Acho que já faz uns dois anos, foi daí que me trouxeram para cá. Imagina, o Dr. Reinard fica falando que estou aqui há mais de 9 anos. Eu sei que o que aconteceu foi há dois anos. Por que ele insiste em falar que estou aqui há 9 anos?  Algum motivo tem...


c%C3%A9u+azuk.jpg


As pessoas daqui...Não dá para conversar com elas. São loucas de verdade. Não está certo me colocarem com elas. Existe um engenheiro, seu nome é Scott, com ele dá para conversar. Não sempre. Às vezes ele está muito por baixo, fica com os olhos distantes e eu sei que ele não está ouvindo. Para ele eu conto as coisas. Acho que ele acredita. Em quase tudo.Ele só fica meio assim quando falo que o céu ficou verde. Uma vez ele falou que provavelmente era a minha vista. Mas eu sei que não. Minha vizinha, a dona Raquel, também viu. Coitada, ela morreu na explosão. Todos morreram na explosão, Quase todos. Ela falou comigo. Ela saiu gritando, “o céu ficou verde” e foi pela rua atrás do marido que tinha saído a pé para fazer compras. Os dois morreram. Acho que sim.
Foi a manhã mais estranha de minha vida. Acordei assustado. Fazia um calor completamente fora do normal. Logo notei que não havia energia elétrica. Isso não seria tão estranho se eu não tivesse percebido que não era só isso. As baterias também não funcionavam. Nada, nem computador, nem rádio. Resolvi sair de casa. Era o caos. Pessoas deitadas na rua, umas se mexendo, outras não. Carros parados no meio da pista. Poucas pessoas andando...todas cambaleando. Foi daí que resolvi olhar meu rosto no retrovisor de um carro. O céu atrás de mim estava verde, sinistramente verde. Daí percebi que havia um som, como se fosse um som de fundo, sinistro, numa vibração baixa. Lembrei-me então de Rose, minha namorada. Ela morava a uns cinco blocos de casa. O celular não funcionava, nem ligava. Nada que tivesse bateria funcionava. Comecei a andar...Já contei tantas vezes essa história para o Dr. Reinard. Ele sempre diz que é tudo minha imaginação. Ele diz que eu criei essa história para desviar minha própria mente de algo muito horrível que havia acontecido comigo ou algo que eu fizera. Mas eu não acredito nele. Eu sei que vi, eu sei o que vi. Aquele ruído horrível começou a aumentar. A frequência começou a mudar, começou a ficar insuportável. Eu senti que a cor do céu estava mudando novamente. Não quis olhar. Aquele som estranho agora doía no ouvido. Vi uma casa vazia. Entrei. Havia um porão. Entrei e me tranquei lá. Dentro era um pouco melhor. Foi aí então que ouvi uma grande explosão. Barulho de coisas caindo, acho que a casa estava caindo. Foi então que algo bateu em minha cabeça. Não sei mais o que aconteceu. Acordei, não sei quanto tempo depois, num hospital. Via mas não ouvia. Não conseguia falar também. Acho que tinha estado em coma.
Algum tempo depois me mandaram para esse hospício. Acho que é um hospício. E eu tenho contado os dias e os meses. Faz um pouco mais de dois anos. E o Dr. Reinard continua dizendo que estou aqui há nove anos. Até mostrou minha ficha. Mas é mentira. Eles querem esconder o que aconteceu. Eu até encontrei um fulano de minha cidade, que eu conhecia de vista. Tentei falar com ele para ele confirmar minha história. Mas ele está muito mal, não consegue se comunicar.
O Dr. Ross continua insistindo que tudo vai ficar bem, Ele mudou meus remédios. Mesmo assim, quando dá, eu cuspo tudo fora. Existem umas coisas que estou  esquecendo. Não sei mais o nome de minha cidade. Seria importante lembrar. Ficaria mais fácil provar para todos o que aconteceu se eu me lembrasse. Será que era Rock...? Rock  alguma coisa? Estava tentando me lembrar do nome de minha irmã. Não consigo também, mas me lembro bem de seu rosto, de seu sorriso. Tenho saudades de seu sorriso.
Acho que me dão injeções enquanto durmo. Pensei que era um sonho, mas depois vi que havia picadas na minha pele. Não gosto disso. O que será que eles querem fazer comigo? Será que querem me fazer esquecer tudo? Algumas coisas eu já estou esquecendo. Não me lembro mais como vim parar aqui. O médico que me aplica as injeções enquanto durmo é o Dr. Reinard, mas a cara dele é a cara do Dr. Ross. É estranho...Agora, toda vez que me encontra, o Dr. Ross diz que eu vou ficar bem, que tudo vai ficar em ordem. Ele fala isso o tempo todo. Ele fala que vou ter uma vida feliz. Para ser franco, eu acho mesmo que estou mais feliz agora. Penso muito menos nas coisas que aconteceram. Algumas já nem lembro mais. Eu não sei mais o que estava fazendo na rua naquela manhã. Lembro-me de que havia pessoas na rua. Elas estavam com algum problema. O Dr. Ross falou de novo que tudo iria melhorar. Por que eu estava na rua? Por que não voltei para casa? Eu  me lembro vagamente que era um dia bonito. O céu era azul. Estava tudo bem. O Dr. Ross sempre fala que as coisas já estão melhores. Eu me sinto melhor.
Hoje falei falei com o Scott, o engenheiro. Ele não está nada bem. Ele piorou ultimamente. O Dr. Ross falou que eu não deveria ficar ou falar com ele. Disse que não era boa companhia para mim. Faz tempo que não vejo o Dr. Reinard. Existe um enfermeiro novo que é muito parecido com ele.
Coitado do Scott, ele não está nada bem. Ele tem umas conversas estranhas. Hoje de manhã ele estava me falando da explosão que houve na minha cidade. Que ele tinha descoberto algumas coisas. Seria interessante eu saber. Coitado do Scott, eu sei que ele quer me ajudar, mas ele está pior do que eu. Fica falando em explosões, em um laboratório de pesquisas avançadas em física lá na minha cidade. Ele não sabe que minha cidade é aqui mesmo. Coitado, acho que andou lendo coisas em algum livro. Disse que eu tinha razão, que o céu tinha ficado verde. Acho que o Scott não tem mais jeito, imagina, céu verde...Esse Scott...
Imagina, que coisa, de onde ele tirou essa ideia de céu verde? Scott, pelo amor de Deus, o céu é azul! Todo mundo sabe que o céu é azul.
O Scott continua piorando. Agora ele está me falando que é mentira que eu estou aqui há 9 anos. Ele já está aqui há muitos anos e se lembra de quando eu cheguei. Coitado, ele nem sabe que eu sempre morei aqui. O céu lá do pátio sempre foi azul. Ele fala de coisas estranhas. Sabe, acho que não vou falar mais com ele. Eu tenho muita pena, mas o Dr. Ross falou que é pela minha própria saúde mental. Não é nada bom falar com o Scott. Eu estou  muito bem agora, estou feliz. Tenho tudo de que preciso aqui.
Estou preocupado com o Scott. Eu parei de falar com ele e faz tempo que eu não o vejo. Talvez tenha piorado, talvez tenham levado o coitadinho embora. Eu gosto daqui. O Dr. Ross continua dizendo que eu vou ficar bem. Não sei porque ele continua falando isso. Estou já estou bem, sempre estive bem. Adoro aqui. Não tem porque o Dr. Ross falar isso. Sempre morei aqui, sempre foi bom. Da próxima vez que o Dr. Ross passar pelo meu quarto, vou falar para ele. Ele precisa entender, o Dr Ross. Eu sou daqui, eu sou feliz. Ele precisa mais é  cuidar do Scott. O Scott sim, que tem problemas. Imagina,  fica falando aquelas coisas estranhas. Coitado! Imagina só! Céu verde! Que ideia mais estranha! Onde foi que ele arrumou uma coisas dessas...Céu verde? Pobre Scott...Que absurdo! Céu verde!?
 
Flávio Cruz
Enviado por Flávio Cruz em 23/09/2012
Alterado em 23/09/2012


Comentários

Site do Escritor criado por Recanto das Letras