O Espelho
“Então, ouvi o número dos que foram selados,
que era cento e quarenta e quatro mil,
de todas as tribos dos filhos de Israel:”
(Apocalipse 7:4)
Meu nome é Steve Sanders. Minha família sempre viveu numa pequena cidade na parte central dos EUA. Só recentemente mudei para Nova Iorque. Existem coisas que meu pai, falecido, me contou e que meu avô, relutantemente, me confirmou antes de morrer. Aparentemente esses fatos ocorridos no ano de 1937 e que meu avô presenciou, realmente marcaram as pessoas da pequena localidade. Ao contrário do que normalmente acontece, todos queriam esquecer, ninguém queria que eles entrassem para a história local.
Tudo começou com um homem que apareceu sem mais nem menos na praça da cidade no meio do mês de setembro daquele fatídico ano. Nunca ninguém soube seu nome porque ele nunca revelou. Aliás, ele nunca falou nada. Inspirava, entretanto, um ar de autoridade que certamente impediu os habitantes de exigirem qualquer informação. Tinha barba e bigode grisalhos, usava um belo terno, certamente confecção fina, um chapéu comum na época, mas certamente de alguma marca boa. Mas tudo isso era irrelevante. O que havia de estranho era que o elegante homem trazia consigo – imaginem – um espelho. Este tinha uma moldura de madeira trabalhada, cerca de 1 metro de largura e 1,80 m de altura. No primeiro dia chegou-se a pensar que o distinto visitante era um comerciante e que estava ali a exibir sua mercadoria. No entanto não havia preço escrito em nenhum lugar e o dito cujo nada falava, só sorria. O fato de ele ser amigável de imediato afastou qualquer suspeita de algo errôneo ou maléfico. Como era natural, as pessoas automaticamente se olhavam no espelho assim que se aproximavam do ponto onde ele se instalara. As crianças e os adolescentes achavam graça e vinham mais de uma vez ver sua imagem refletida. Os adultos também vinham mas com um certo receio. Disfarçadamente também olhavam sua imagem. Um ou outro dirigia a palavra ao estranho que entretanto jamais respondia. Entretanto olhava com simpatia para seu interlocutor e invariavelmente ensaiava um sorriso.
Especulou-se que talvez fosse um mágico que mais tarde viria para a cidade e estaria ali fazendo seu “marketing”, atiçando a curiosidade das pessoas. Dos boatos todos esse foi inicialmente o mais forte e que se espalhou rapidamente. O dia seguinte se encarregou de desfazer essa primeira impressão. Isto aconteceu através da Sra. Jenkins que ao mesmo tempo botou na rua um monte de outras conjeturas. Ela chegou logo de manhã e o senhor misterioso não estava mais na praça. Ela andara bastante para ver o espelho – uma vizinha havia lhe contado a história – e ficou um pouco decepcionada. Começou a voltar para casa quando viu, de repente, o misterioso espelho e seu portador numa rua distante três quadras do primeiro local. Não teve dúvidas. Parou e depois de falar algo para ele, procurou ver o reflexo de sua imagem . O que aconteceu a seguir é algo difícil de se descrever. Segundo meu avô, havia várias versões, mas a mais comum falava que a sra. Jenkins foi tomada de um pavor quase indiscritível e, agitadamente, tentava escrever algo na palma da mão com a caneta que tirara da bolsa. Depois, sem falar nada com ninguém, saiu em caminhada frenética de volta para casa. Em vão os vizinhos e outros amigos tentaram descobrir o que ela havia visto no espelho, o que a assustara tanto. Não ficou muda mas se recusava terminantemente a falar sobre o assunto. Mas as atenções logo se desviaram dela. No mesmo dia mais 9 pessoas tiveram reações estranhas ao se mirarem no espelho, que, a essa altura, já estava sendo chamado de “espelho mágico”. O caso mais dramático foi do Sr. Griffin, que ficou com a pele completamente vermelha e começou a dar gargalhadas como um louco. No terceiro dia a quantidade de pessoas com reações estranhas aumentou muito. É bem verdade que a maioria dos curiosos não via nada mais do que o próprio corpo. Para alívio de todos, no dia seguinte, quem quer que tivesse sido afetado pelo “reflexo” ou não se lembrava do que ocorrera ou não queria se lembrar, mas todos estavam calmos e apresentavam uma paz fora do comum.
Após uma semana e meia podia se dizer que todos da cidade haviam olhado para o espelho para ver se viam algo diferente. A curiosidade agora era sobre as anotações que as pessoas afetadas fizeram ou na própria mão ou em pedaços de papel. Era inacreditável, ninguém conseguiu achar uma só anotação. Era definitivamente um grande mistério. Por falar em mistérios, outro, bem grande, era como o senhor do espelho aparecia na cidade e como saia no fim da tarde. Apesar de ser uma cidade pequena com poucas ruas, nunca ninguém conseguia saber de onde ele viera e como ele tinha saído. Era como se todo mundo ficasse hipnotizado nesse momento. No décimo terceiro dia ele não apareceu. Houve reunião na prefeitura, no clube e em outros lugares. As hipóteses sobre o que ocorrera eram inúmeras. Um enviado de outro planeta para estudar seres humanos ou uma entidade demoníaca perscrutando as almas? O Sr. Reynolds, mais prático, achava que era apenas um “gozador” de uma cidade grande querendo ridicularizar os caipiras do interior do estado.
Mal começou a diminuir o interesse sobre o assunto quando todas as teorias caíram por terra. Não porque tivessem conseguido uma explicação, mas porque algo mais grave aconteceu. Alguns dias depois houve um reboliço na praça principal. Inúmeras relatos de desaparecimento de pessoas. Conforme as notícias iam chegando, o painel foi ficando claro: os desaparecidos eram exatamente aqueles que tiveram reações estranhas ao se olharem no espelho. Haviam sumido durante a noite: todos exatamente na mesma noite. Tentou-se contatar alguém que tivesse tido a experiência do reflexo para se tentar evitar o desparecimento, mas não havia mais ninguém. Fizeram a lista e a conta: 143 habitantes haviam se evaporado. Não havia respostas e o pavor era tão grande que nem mais as teorias estavam aparecendo. O que poderia ser feito? Avisar o governo do estado, avisar as autoridades federais? A política naquela época já funcionava. Imediatamente os líderes da cidade pensaram como seria péssimo para a reputação local aquela publicidade. Hoje em dia seria difícil, com Internet e grandes redes de TV, esconder um fato de tamanha amplitude. Naquela época, entretanto, era mais difícil divulgar do que esconder. Além disso, quem iria acreditar? A cidade seria ridicularizada. Um conjunto de 11 líderes resolveu determinar sigilo absoluto sobre o assunto. Estava proibido inclusive passar a história para filhos e netos. Cortariam o mal pela raiz. Confiscaram e queimaram todas as edições do pequeno jornal local sobre a matéria. Recolheram as cópias de casa em casa. Na verdade alguém guardou um pequeno recorte. Não só isso, passou a sua versão dos fatos para os filhos e para os netos. Nada mais, nada menos que o Sr. Sanders, o meu avô.
Agora, só mais alguns detalhes e podemos terminar esta história. Alguém se lembrou de que o Sr. Porter morava longe da cidade, na zona rural, e ninguém ouvira falar dele, ninguém sabia se ele havia desaparecido. Afinal fora ele que desmaiara ao olhar sua própria imagem. Imediatamente uma comitiva de pelo menos 15 pessoas se dirigiu para lá. Não deu outra. A casa estava completamente abandonada. Agora todos tinham o número exato de vítimas: 144. Não sei se a palavra “vítima” é apropriada, mas é a que me ocorre no momento. Quanto ao número, nem me atrevo a fazer conjeturas, pois esse é um assunto muito delicado. Prefiro pensar que tudo não passa de uma simples coincidência e que os fatos não são fatos mas fruto da imaginação de meu avô. Quanto aos recortes do jornal, ainda não sei o que dizer, estou tentando arrumar uma explicação...
Flávio Cruz
Enviado por Flávio Cruz em 31/08/2012
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