Flávio Cruz

Esse estranho mundo...

Textos


Rebeca é minha vizinha. É casada e tem uma filha de três anos. O nome da menina eu não sei porque Rebeca não conversa com ninguém. Com o marido, talvez. Não posso garantir pois nunca vejo os dois ao mesmo tempo e, além disso, ele tem uma doença grave, grave mesmo. Precisa ficar em casa, sai apenas de vez em quando para tratamento. A Rebeca também sai muito pouco, praticamente sai só para trabalhar. Sempre vai correndo, puxando a menina, cujo nome – como já disse - não sei, arruma a cadeirinha no carro, ”voa” para o trabalho. Quer dizer, só pode ser para o trabalho, pois volta 9 horas depois. A garotinha certamente vai para a escola, porque no trabalho de Rebeca, tenho certeza, ela não pode ficar. Tudo funciona como um relógio, tudo certo, tudo sempre igual. A Rebeca só me cumprimenta se for absolutamente necessário, Sabe, quando você dá de cara com alguém – especialmente se é seu vizinho – que não tem jeito? Um sorriso pálido e um “bom-dia”, no máximo. Não dá tempo nem de você pensar em puxar conversa: quando você percebe, ela já se foi.

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Às vezes olho disfarçadamente pela janela. Na casa não há movimento nenhum. Consigo ver os brinquedos da filha na sala, mas a menina brincando, não vejo não. Outro dia, estive pensando, que a garota devia ser mais branca! Caramba, ela nunca brincou fora de casa! Daí, então, “matei a charada”. O pouco de sol que ela toma é da escola. Eu tenho certeza de que Rebeca é uma boa pessoa. Apenas é tímida, introvertida e, coitada, deve ter uma vida miserável. Trabalhar, trabalhar, cuidar do marido, cuidar da filha...Como arrumar tempo para um bate-papo furado? Não dá não... Finalmente, outro dia, Rebeca quebrou a rotina. Abriu o porta-malas do carro e começou a trazer coisas de dentro da casa. Primeiramente pensei que talvez ela estivesse tendo um ataque nervoso, estava cheia de tudo, estava abandonando o marido. Por outro lado, achei que aquilo não seria uma coisa dela, afinal de contas, ela faz tudo certinho, jamais deixaria o companheiro, especialmente numa circunstância dessas. Posso garantir que ela tem princípios morais, além de outros: princípios, é claro! Daí vi que tinha razão. Não era mudança coisa nenhuma. O que Rebeca estava fazendo era trazer para fora coisas da menina. Não se assuste, ela também não estava mandando a menina embora. Pude perceber aos poucos que, o que ela estava trazendo para fora eram brinquedos antigos e outras coisas que uma menina de três anos não usa mais. Sei também que ela não estava vendendo ou emprestando as coisas para uma amiga que ia ser uma futura mãe. Não, a Rebeca não deve ter amigas íntimas assim. Certamente ela estava doando as “coisas” para uma dessas instituições de caridade. Eram utensílios e brinquedos que poderiam ser usados por um possível irmãozinho ou irmãzinha da garotinha. Daí, então, que me “caiu a ficha”...A Rebeca não quer ter mais filhos. Motivos ela tem de monte. Além disso, aqueles brinquedos e “coisas” da filha estavam “novinhos em folha”...Quem se desfaz de coisas assim, se tem projetos para mais um filho? Foi tudo muito rápido, quando percebi, ela já tinha saído. Dali a pouco estava voltando. Dava até para saber o local onde ela tinho ido fazer sua doação. Se eu fosse fofoqueiro e curioso, poderia ir lá verificar. Mas nem precisava, tinha certeza.... Estão vendo como são as coisas? A Rebeca não fala comigo, não fala com ninguém, não sai de casa e eu sei um monte de coisas a respeito dela. Até coisas muito íntimas, como o projeto de não ter mais filhos..Isso mesmo, posso garantir, com certeza absoluta, que Rebeca não pretende mais ter filhos...
Flávio Cruz
Enviado por Flávio Cruz em 09/07/2012


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