A Estrela d’Alva
Era o ano de 2137 e Mary Lou estava se preparando para a mais importante viagem de sua carreira de astronauta. Era também a estreia da nova geração de naves espaciais, com propulsores jamais imaginados pela inteligência humana. Inicialmente a agência do espaço da Grande Confederação da Terra havia concebido uma missão tripulada por robôs ultrassofisticados, também criação recente. Entretanto, depois de muita deliberação, decidiram que era seguro e também importante que o ser humano tivesse este tipo de experiência. Além do mais, os astronautas agora não só eram preparados desde crianças para este tipo de projeto, mas também tinham caracterísicas genéticas próprias para viagens espaciais implantadas em seus corpos desde sua concepção em laboratório.
Mary Lou, apesar de ser uma excelente profissional, tinha herdado os gens de seu pai – ela o conheceu mesmo tendo sido gerada em laboratório – um certo sentimentalismo característico das gerações antigas. Ela nunca deixara isso ser percebido por ninguém. Desta forma, apesar de seu treinamento, ela se emocionava ao se lembrar da imagem do pai. Lembra-se ainda hoje, adulta, de uma cena comovente quando ela tinha cinco anos. Seu pai, astronauta comandante Arvin – do primeiro escalão – disse que havia um presente que queria lhe dar. Era uma corrente de ouro com um pingente no qual estava incrustado um lindo diamante. Era uma joia que estava na família há gerações. O comandante Arvin, ou Fred, como era chamado pelos amigos, colocou a corrente no pescoço de Mary Lou. Disse a ela para levá-la em todas as suas viagens. E foi o que ela sempre fez. Deu à joia o nome de Estrela d’Alva.
O destino, no entanto, às vezes é cruel. Depois de três viagens feitas por Mary Lou com a corrente, Fred, que ainda fazia muitas missões espaciais, foi designado para uma viagem como esta que Mary Lou ia fazer agora. No entanto, as naves eram da antiga geração, que, de qualquer maneira eram também bastante sofisticadas. Por algum motivo, talvez subconsciente, ele pediu para a filha que lhe “emprestasse” a joia que ele havia lhe dado. Queria tê-la em seu bolso durante a missão. Ironicamente sua nave desintegrou-se quando estava indo em direção a Júpiter, matando todos seus tripulantes. O acidente nunca foi bem explicado. O boato era que faziam parte da missão experiências nunca antes tentadas mas tinham a ver com os resultados obtidos através do extraordinário acelerador de partículas recém-construído em Marte. Houve uma comissão especial de cientistas que pesquisou os eventos e chegou a conclusões que obviamente escondiam o que realmente tinha acontecido. Mary Lou fazia agora suas missões sem levar a Estrela d’Alva. E desta vez, sentiu falta. Teve um pouco de vergonha ao pensar nisso, afinal de contas ela era uma oficial de primeira linha, a comandante Arvin, como era chamada em seu meio.
O Grande Colisor de Hádrons que começou a funcionar em 10 de Setembro de 2008, era um brinquedo de criança comparado ao que havia sido construído em Marte. Cem vezes maior, dez vezes mais sofisticado. Suas atividades haviam sido suspensas após o acidente com a nave de Fred, mas alguns meses depois tudo voltou ao normal. Claro que astronautas e cientistas não devem ser, e normalmente não são supersticiosos, mas as coincidências da missões de Mary Lou com as de seu pai eram assustadoras. Ambas deviam “dar um passeio” pelo sistema solar e ambas faziam parte de experimentos relacionados com o grande acelerador de partículas. A comandante Arvin não pensava em nada disso, pelo contrário, estava ansiosa e excitadíssima com sua missão. Pensou que seria interessante ter a correntinha de ouro que seu pai havia lhe dado, a “Estrela d’Alva”. Seu pai, se vivo, também gostaria...
A “New Enterprise” estava agora há um mês de distância de Júpiter, provavelmente não muito longe do ponto onde a nave de seu pai, o comandante Arvin, havia se desintegrado. Uma parte da missão era justamente deixar na órbita do planeta quase metade da própria nave, que seria, na verdade, a primeira grande peça de uma enorme estação que ficaria na órbita de Júpiter. Outras inúmeras missões viriam para completar a obra. A outra parte da missão era praticamente função apenas dos computadores. Os tripulantes só fariam algo numa emergência e, ainda assim, de uma maneira restrita. O segredo não incomodava Mary Lou nem os outros tripulantes. A ciência entrara numa fase tão avançada que era difícil dominar e fazer parte dela de uma maneira completa e direta. Os grandes computadores faziam quase tudo.
Quanto mais a “New Enterprise” se aproximava do grande planeta era inevitável para Mary Lou se lembrar da tragédia e de seu pai. Isto,entretanto, não afetava seus afazeres ou seu desemponho. Ela era provavelmente a mais equilibrada da equipe e jamais o teste emocional que era feito em todos os tripulantes a cada 24 horas indicara nela qualquer alteração. Nem mesmo alguns pequenos incidentes recentes na viagem haviam produzido qualquer efeito em seu comportamento. Houve vários casos de mau funcionamento de navegação que logo depois eram corrigidos pelo sistema. A única coisa que a incomodava um pouco era que, toda vez que ela tentava analisar o ocorrido, principalmente com o objetivo de evitar nova ocorrência, simplesmente não havia registro do mesmo. Era como se a inteligência dos computadores estivesse tentando esconder algo. Nos últimos três dias, porém, algo mais grave havia acontecido. Uma pequena vibração, que foi notada por todos da tripulação, ocorrera por duas vezes. Os computadores novamente nada registraram. A essa altura Mary Lou não sabia se era mais grave a vibração ou o fato de os computadores se recusarem a notificá-la e explicá-la.
Uma semana depois, algo mais grave ainda havia ocorrido. Uma vibração intensa, por mais de 35 minutos, outra vez sem nenhuma notificação dos computadores, deixara toda a tripulação muito preocupada. Houve reunião, muita discussão, diversas opiniões, mas o fato era que nada podiam fazer. As mensagens especiais enviadas para Marte e para Terra tiveram respostas evasivas, dizendo que estavam analisando, estudando, etc.
Foi então que aconteceu o inimaginável. Uma vibração enorme, assustadora, como se a espaçonave estivesse se partindo em duas. Todos os tripulantes desmaiaram e só acordaram horas depois. Aparentemente a nave estava intata, tudo funcionando. Imediatamente todos começaram a consultar os dados. Mais uma vez, não havia indicação de nenhum mau funcionamento. Nada. No entanto estavam “faltando” dezessete minutos no tempo, no histórico, nos dados, em tudo. E todos os computadores, mesmo os especiais dedicados somente à missão do grande acelerador, buscavam freneticamente “entender” os minutos faltantes, sem conseguir. Começaram então a montar uma situação hipotética, trabalhar em cima dela, para que as coisas voltassem ao normal. Enquanto isso membros da tripulação recebiam mensagens não oficiais de conhecidos e amigos de Marte e da Terra narrando estranhos eventos. Nada gigantesco, mas coisas que eram surpreendentes. Prédios e máquinas que sumiram, pessoas que apareceram em outros lugares depois da “falha dos 17”, como ficou sendo chamado o evento. O óbvio passou a ser o objeto de todas as conversas. O grande experimento que envolvia a “New Enterprise” e o grande acelerador havia interferido no tempo-espaço do sistema solar e talvez até fora. Provavelmente algo infinitamente pequeno em termos cósmicos mas altamente significativo em termos humanos. Obviamente a espécie humana, por mais adiantada que estivesse, ainda não estava preparada para lidar com as consequências deste novo avanço da ciência.
Foi durante uma conversa com outro membro da tripulação que, quase inconscientemente, Mary Lou enfiou a mão no bolso de sua túnica e – não podia acreditar – sentiu com seus dedos a correntinha de ouro que seu pai lhe dera. Ficou lívida e mal conseguiu esconder o que estava sentindo da sua interlocutora. Pediu desculpas e se retirou para seus aposentos. Tirou a joia e colocou-a sobre a mesa. Não havia dúvida, era a “Estrela d’Alva”. Consultou dados em seu computador pessoal. As coordenadas coincidiam. O “evento” ocorrera exatamente no mesmo local onde a nave de seu pai havia desaparecido. Lógica? Nenhuma. Por que só a corrente? Definitivamente, pensou ela, os fatos científicos não podiam ser separados da consciência humana. Havia uma ligação. Não comentou nada com ninguém. Iria parecer uma idiota, ninguém acreditaria e afetaria sua imagem de comandante. Nos dias seguintes houve inúmeras entrevistas com os comandantes da missão da Terra e de Marte. Queriam mais dados, além do que diziam os computadores. Coisas pessoais, o que eles haviam sentido. Eles sabiam algo mais, porém não queriam compartilhar, só queriam “ extrair informações”. Havia um grande enfoque em “experiências pessoais” nas perguntas que faziam. O que acontecera não era um fato científico isolado, tinha a ver com “consciência pessoal”, talvez até com espiritualidade, algo de que praticamente não se falava mais, a não ser em estudos históricos. Ela quase falou sobre a joia durante as investigações, talvez fosse uma colaboração importante. Depois decidiu que não.
Voltou para sua sala, abriu a foto de seu pai na tela, olhou para seu sorriso e para seu uniforme de comandante, colocou a Estrela dÁlva na palma da mão e chorou ...de emoção.
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Enviado por Flávio Cruz em 29/06/2012
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