Flávio Cruz

Esse estranho mundo...

Textos

A Fábula do Ratinho
ou
No meu reino não há choro nem lágrimas
 
Dicionário Houaiss:
Fábula: substantivo feminino
1 Rubrica: literatura.
curta narrativa, em prosa ou verso,
com personagens animais que agem como seres humanos,
e que ilustra um preceito moral

 
  
Era uma vez um homem muito distinto e inteligente que adotou um ratinho. Todos acham que os ratos são nojentos e feios, além de perigosos para a saúde, mas esse era diferente.  Muito simpático, atraente e divertido. Além disso, ele sabia cantar, escrever e dançar. Era também ator e sabia fazer filmes. O homem sabia que o ratinho poderia ficar famoso e por isso resolveu ir para um lugar cheio de sol e lagos e comprou um terreno bem grande para ele. Ele sabia que muita gente viria visitar o animalzinho e por isso não hesitou em investir um bom dinheiro em seu futuro. Além disso, achou que talvez seu protegido pudesse se sentir sozinho e por isso convidou outros para morar no novo local: patos, ursos, esquilos e animais em geral. Todos tinham muita habilidade, eram engraçados e vestiam roupas como a gente. Num instante o local ficou famoso.  Parecia um reino. Tanto assim que ele decidiu chamar também algumas princesas para fazer parte da família. Agora sim, ele poderia chamar sua propriedade de “reino”.
Castle.jpgE aconteceu exatamente como o inteligente homem havia pensado. Muitos e muitos vieram visitar o ratinho e os outros animaizinhos. Claro, as princesas também ficaram famosas e todos gostavam delas. Tanta gente vinha ali que ele teve de contratar muitos funcionários para ajudar. Não pagava muito mas as pessoas mesmo assim não se preocupavam e gostavam de trabalhar pois os animaizinhos eram realmente simpáticos e havia muita alegria para todo lado. E o reino cresceu e cresceu e foi ficando cada vez mais bonito.
Conforme o reino foi crescendo, ele também foi se enchendo de mistério. No bom sentido, no entanto. Mistérios cheios de fantasia, aventura e sonhos. Todos gostavam disso. Claro que com todo esse movimento muita gente resolveu também vir morar perto do reino. Desta forma,a região ao redor da propriedade também cresceu e ficou bem populosa. Daí então que algo triste aconteceu. Começaram a aparecer uns tipos esquisitos e coisas também esquisitas começaram a acontecer. Uma vez prenderam um rapaz que não havia cometido nenhum crime só porque sua pele era diferente da pele dos outros. Eles sabiam que ele não tinha feito nada de errado mas mesmo assim deixaram o pobre coitado preso muitos e muitos anos. E isso aconteceu mais de uma vez.  Eu sei que é difícil de acreditar, mas aconteceu. Existem outras coisas horríveis que nem vou contar porque fico com vergonha. É isso mesmo, dá vergonha saber do que um ser humano é capaz, principalmente se levarmos em conta que ali perto há uns animaizinhos que são tão corretos.  Se começarmos  a falar em dinheiro então, você nem vai acreditar o que as pessoas podem  fazer.  Mas voltando às pessoas que têm a pele um pouco diferente, tenho algo horrível - mais um caso - para contar. Outro dia um fulano perseguiu e matou um rapazinho – de pele diferente – porque achou que ele estava agindo de maneira suspeita. Na verdade ele estava: estava fugindo do seu assassino que o estava perseguindo. E não sei não, acho que vai conseguir se safar porque fizeram há pouco tempo uma lei que diz que uma pessoa pode matar a outra em legítima defesa. Quer dizer, é só declarar que foi legítima defesa, não precisa provar. Cada lei...Claro, não era defesa e muito menos legítima. Todo mundo sabe que ele matou o pobre jovem por causa da diferença de cor. Ironicamente, ele na certa não vai para a cadeia enquanto outros – ainda por causa da pele – ficam na cadeia muitos anos sem terem feito nada de errado. Parece inacreditável mas é verdade.
black+woman+crying.jpg
Tudo isso  continua acontecendo pertinho do maravilhoso reino cheio de fantasia e sonhos. Lá dentro eles não sabem nada disso. Nem podem. As princesas não podem chorar. Nem podem chorar as meninas e os meninos que lá estão. Podem, no máximo, chorar de alegria.  Os pais e os funcionários também não podem chorar pois, do contrário, as crianças e os animaizinhos vão ficar assustados e achar que há algo de errado. E, convenhamos, choro  e tristeza não ficam bem num lugar assim. Mas do lado de fora, os amigos e os pais do rapazinho que morreu estão chorando muito. Muito. Como chorou também, muito, a mãe de outro rapaz que ficou preso décadas por um crime que não cometeu. É assim. Existem lugares onde não se pode chorar e outros lugares onde chorar é  a única coisa que que se pode fazer.


UOL: Homicídio impune de jovem negro deixa americanos indignados


Flávio Cruz
Enviado por Flávio Cruz em 15/04/2012


Comentários

Site do Escritor criado por Recanto das Letras