Flávio Cruz

Esse estranho mundo...

Textos

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A biblioteca de Laurentz: Dom Casmurro nas estrelas

Quando Laurentz acordou, a primeira palavra que lhe veio à mente foi “Inspiration”. Esse era o nome da nave espacial da qual ele era o segundo em comando e também a primeira a fazer uma viagem de 78 anos, a mais longa da história, desde que o homem tinha ido à Lua em 1969. Ele tinha voltado do coma profundo a que fora submetido, conhecido por “tiefenschlaf”. Era uma espécie de hibernação, processo inventado há mais de 90 anos por um cientista alemão e que se utilizava de nano implantes em todo o corpo.
Lentamente, a consciência de Laurentz foi voltando e ele se lembrando dos detalhes. 77 anos deveriam ter se passado na Terra desde que tinham partido. Eles estavam programados para acordar um ano antes de chegar a seu destino. E o destino era o planeta Gliese localizado a cerca de 20 anos luz da Terra. No entanto, como o chefe da missão, o cientista Spitz, sempre falava, era como se eles tivessem dormido apenas algumas horas. Apesar de ser um profissional, sentiu um calafrio. A ideia de que estivera ali por mais de três quartos de século, era ao mesmo tempo estarrecedora e fascinante. Laurentz tentou ficar calmo. Sabia que teria de ficar ali, esperando, pelo menos metade de um dia, até que seu corpo se ambientasse. A essa altura, metade da tripulação de 18 já deveria estar acordada. Alguns provavelmente estariam examinando os controles, os dados. Provavelmente logo alguém iria observá-lo através da escotilha da cápsula. Estava curioso.
Na verdade, passaram-se 629 minutos e trinta e sete segundos até que um pequeno zumbido indicou que o seu “pod” estava sendo aberto. Seu corpo tinha sido bastante massageado, todos os sinais vitais estavam ótimos, podia sair. Foi o que falou o sistema inteligente da nave, o “Wunder”. Saiu lentamente e ouviu uma voz feminina advertindo: Err, err... Alguma coisa estava errada, algum sistema havia falhado. Olhou o painel de informação ao lado de sua cápsula e teve um calafrio. Apenas 11 anos haviam se passado. Algum defeito tinha ativado seu ressuscitamento muito antes da hora. Imediatamente o óbvio veio a sua mente. Dezoito astronautas vivendo por décadas... Os suprimentos não seriam suficientes. Caminhou pelo corredor do seu setor e descobriu, para seu alívio, que as cinco cápsulas daquela área estavam funcionando e nenhum astronauta havia voltado de seu sono profundo. Não demorou muito para que ele conseguisse verificar, através de um painel de controle, que todos os 17 companheiros estavam bem e não havia nada de errado com o “tiefenschlaf”. Deu um suspiro de alívio.
Alguns minutos depois, ele atingiu uma das salas de comando e começou a conversar com “Wunder”. As notícias eram boas, estava tudo em ordem. Laurentz pediu, então, que ela – a unidade de IA – avaliasse o consumo extra de suprimentos, incluindo água, pelos 66 anos extras de sua vigília. Para sua surpresa, este consumo adicional estava previsto e com boa margem. Fez uma espécie de tour pela nave, o que demorou várias horas, pois ela era enorme e foi descansar, apesar de ter dormido por 11 anos. Obviamente o stress emocional causado pela situação estava tendo seus efeitos. Enquanto relaxava ficou se lembrando dos últimos dias antes da partida, quando conversou muito com Spitz, o chefe da missão.  Lembrou-se de suas palavras:
-Tenho bastante inveja de vocês. Essa viagem seria para mim o mesmo que o céu que nossos antepassados sempre desejaram. Embora seja uma viagem de 77 anos, vai ser como um passeio de algumas horas. Mais um ano até pousar em Gliese, é claro. Depois de mandarmos tanto equipamento não tripulado, finalmente vamos para lá. Você vai para lá, Laurentz. Quem me dera!
-Mas a grande glória é sua, Spitz. Você foi o grande criador da missão, você tornou isso possível.
Lembrou-se do sorriso vago que Spitz deu. E daí se lembrou de algo mais, para o que na época não tinha dado importância, mas que agora estava martelando em sua cabeça:
-Sabe, Laurentz, às vezes penso se não seria melhor vocês ficarem acordados mais tempo. Olhar mais para o Universo, sentir o tempo passar. Acho um desperdício dormir 77 anos!
-Spitz, você mais do que ninguém, sabe que isso não é possível e muito menos recomendável. Além de envelhecermos enquanto estamos acordados, ainda existe o problema do tédio. E isso é um fator científico, não é apenas uma curiosidade psicológica. Você mais do que ninguém, deveria saber disso.
Spitz deu, de novo, aquele sorriso enigmático e distante e respondeu:
-Não sei, não, Laurentz. Não sei não...
Agora parecia claro que aquele não tinha sido um erro de computador, como se dizia antigamente. Parecia coisa planejada, parecia coisa do Spitz. Uma espécie de experimento. Talvez ele tivesse feito isso com autorização superior. Fazer com que parecesse um acidente, teria sido fácil.
Incomodado com a ideia, levantou-se, e foi falar com Wurden. Perguntou-lhe se havia algum plano de emergência, algum protocolo para uma situação como aquela. Wunder não demorou mais do que uma fração de segundo para responder:
-É um procedimento padrão. Dormir com estimulante químico por 72 horas seguidas e ficar acordado por 12 horas. Repetir essa rotina indefinidamente.
Isso encurtaria sensivelmente o tempo de vigília durante a viagem, além de, obviamente, economizar bastante em alimentos e água, pensou Laurentz. Wunder continuou:
Atividades programadas, tais como observação do espaço, exercícios físicos e outros, entre os quais, leituras.
Laurentz achou estranho. Embora muitas pessoas ainda lessem, embora de uma maneira diferente, a maioria do entretenimento das pessoas era através de sofisticados aparelhos diretamente ligados ao cérebro. Foi então que se lembrou de outra coisa que Spitz tinha falado alguns meses antes, enquanto eles se preparavam para a grande viagem. O chefe começou a discursar sobre uma situação hipotética em que um astronauta tivesse que viver décadas sozinho dentro de uma nave espacial. Para ele não seria um problema, comentava. Só de livros, nos últimos dois séculos, havia mais de 3 milhões, todos lidos ou “tocados” através do sistema “fullsense”. Agora tudo isso é muito óbvio, mas não era assim antigamente... E Spitz continuava a falar.
Ele tinha razão. O último livro impresso tinha acontecido em 2027. Desde esse ano, os livros passaram a ser somente eletrônicos e por volta do ano 2050 eles passaram a ser elaborados sempre através do sistema “fullsense”, que foi sendo aperfeiçoado até o presente, de uma maneira realmente prodigiosa. O sistema “todos os sentidos” era possível através de um aparelho chamado “magisboksen”, inventado pela Academia de Ciência Euro-americana e possibilitava a percepção diretamente pelo cérebro, não através dos vários órgãos do sentido, de sensações visuais, aromas, ruídos, música, diretamente relacionados com o enredo. Era o livro total.
Laurentz conhecia essa história toda, mas contada pelo Spitz tinha um gosto diferente. Ele sabia também que os especialistas retomaram todas as grandes obras literárias anteriores, desde a época da invenção da imprensa e as adaptaram para o novo sistema. Foi um trabalho excepcional. Recriar a ambientação de época, as imagens, as roupas, os costumes e até os odores, exigiu um esforço descomunal. Algo muito curioso foi reavivar as obras de ficção científica, os acertos e os desacertos, mantendo a visão do escritor da época e não tentando adaptar, muitas vezes, previsões errôneas sobre o futuro, que agora era o presente ou até o passado.
Estava óbvio o recado de Spitz. Ele estava aconselhando Laurentz. Estava ensinando-o como passar décadas sem ficar entediado com a solidão do espaço profundo. Laurentz sentiu uma raiva misturada com uma certa admiração pelo chefe da missão. O fato é que nada podia ser feito depois do que tinha acontecido. Tentar fazer novamente a indução ao estado de sono profundo, sem ajuda humana exterior, era um risco inaceitável.
Nos próximos dias, Laurentz passou a examinar a vasta biblioteca que Spitz tinha deixado para ele. Obras completas de Mark Twain, Ernest Hemingway, William Faulkner e todos os demais. Europeus como Herman Hesse, Shakespeare, Karl Marx, enfim todos. Experimentou um livro na “magisboksen”. Escolheu “O Velho e o Mar” de Ernest Hemingway e sentiu o barulho das ondas e o cheiro do oceano de uma maneira tão vívida, que era como se ele estivesse lá. Pensou, então, consigo mesmo que o velho Spitz tinha razão. Aquilo poderia se tornar interessante. Ficou horas “experimentando” outros livros. Estava realmente começando a gostar da “leitura total”.
Estava na hora de Laurentz ter o seu ciclo de sono de 72 horas e assim ele o fez. Quando acordou, decidiu passar algumas horas no domo de observação. Antes, porém, foi até a “biblioteca”. Depois de passar por algumas obras originalmente escritas em japonês, ainda na época dos livros impressos, Laurentz resolveu voltar para a Literatura Americana. Por engano, talvez, viu-se, de repente, olhando para um escritor chamado Machado de Assis, que viveu no século XIX no Brasil. E lá estava um livro chamado “Dom Casmurro”. Talvez por achar o título bizarro, talvez por achar a época interessante, ou simplesmente por acaso, resolveu “ligar” o livro e ”sentir” sua ambientação. Disse consigo mesmo: esse vai ser o primeiro. Apanhou sua “magisboksen”, e dirigiu-se pelo piso rolante até o domo de observação. Ponderou que queria uma experiência dupla: olhar o Universo e “viver” aquela história. Acomodou-se confortavelmente, começou a olhar para aquela magnificente paisagem de estrelas e nebulosas e ligou seu aparelho. Antes que a narração fosse começada, viu-se no Rio de Janeiro de 1860. As pessoas na rua, uma estranha língua, um aroma característico. Imediatamente se apaixonou pela experiência. Ouviu então uma pergunta: Se ele queria sentir a narração sob o ponto de vista de Bentinho, o personagem principal. “Por que não?”, pensou. Definitivamente, era uma sensação indescritível. O Spitz, ele tinha de reconhecer, era um homem sábio. Deve ter pensado, como ele mesmo jamais poderia viver aquela sensação, pelo menos ele saberia que alguém o faria. Seguramente seu despertar antes da hora tinha sido intencional. Deu um sorriso e começou a viver a narração, não sem antes falar em voz alta:
-Dom Casmurro, seja você quem for, aposto que nunca imaginou estar viajando pelas estrelas no ano de 2354! Vamos lá...
E assim Laurentz retomou sua incrível jornada de 66 anos para Gliese...

 
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Flávio Cruz
Enviado por Flávio Cruz em 26/07/2015
Alterado em 11/07/2016
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