Flávio Cruz

Esse estranho mundo...

Textos

 
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O revisor do tempo


Karev entrou mais uma vez no grande domo e dirigiu-se até a parte central, onde uma poltrona muito especial o esperava. Era uma frustração passar por aquela experiência fantástica e depois ter todas as memórias deletadas. Fazia parte do trabalho e ele já tinha se conformado. Isso, porém, não o impedia de sonhar com a possiblidade de, um dia, quem sabe... Aquele era o invento mais sofisticado do mundo. Com ele, os cientistas podiam “ver” o passado e o futuro: era uma espécie de máquina do tempo.
Ele tinha doze anos quando anunciaram que a grande máquina tinha sido, finalmente, completada. Imediatamente desejou poder usá-la, mas sabia que aquilo ia ser privilégio de poucos. Primeiro você tinha de pertencer à “casta” dos cientistas, o que já era muito difícil. Depois, dentro desse grupo, você teria de ser especial, mas especial mesmo. Todos a chamavam de “máquina do tempo”, embora isto fosse enganoso. O “passageiro” poderia viajar no tempo, mas apenas como observador. Era como se ele estivesse assistindo a um filme “holográfico”. O passado permitia incursões maiores: algumas vezes tinha sido possível recuar até a alguns anos antes de Cristo. Mais do que disso, as imagens ficavam confusas, às vezes atropelavam-se com outras de outras épocas. Para o futuro, era mais complexo e difícil. O tempo máximo conseguido tinha sido 17 anos.
Voltando para o passado, o problema do “paradoxo”, portanto, não existia. O passageiro do tempo só observava, não podia mudá-lo. Já com o futuro, era diferente. Sabendo o que iria acontecer, seria possível mudar o presente para evitar determinado futuro, e aí estaria sendo criado um paradoxo. Isto tinha sido solucionado pela própria natureza da experiência. Por algum motivo, ainda desconhecido, assim que o indivíduo saía do domo, as memórias daquela sessão eram misteriosamente deletadas.
Talvez porque Karev fosse obcecado com a ideia, talvez porque ele fosse a pessoa certa para o trabalho, quando ele se tornou um adulto, foi designado para trabalhar no projeto “Gjennomgang”, que em norueguês significa “revisão”. O domo, onde se fazia a “correção de realidade passada”, era localizado em Oslo, mesma cidade de Andreas Agard, o famoso cientista, que em 2873 concebeu e viabilizou a tecnologia de se viajar virtualmente no tempo, e na mesma descoberta, descartou completamente a possibilidade de interação com a época da viagem. Com o passar dos anos, a tecnologia foi melhorando e as imagens holográficas foram ficando mais acuradas. Por outro lado, não havia nada muito prático na atividade: era mais uma diversão nesses desvairados tempos do futuro. Tudo mudou, porém, no começo do ano 2915, quando, por acaso, um curioso “acidente” aconteceu. Ainda na versão antiga da máquina do tempo, o cientista encarregado na época, Olav, percebeu, ao sair da máquina, que se lembrava do que tinha visto. Estava naquele mesmo local e, viajando para o futuro, viu que um cientista finalmente iria conseguir “interferir” nos eventos, embora de uma forma sutil e discretíssima. Através de impulsos elétricos de seu cérebro, canalizados através dos mecanismos quânticos, o cientista do futuro conseguia fazer pequenas modificações na linha do tempo. Alguém se atrasando para um encontro por causa de uma distração, deixava de encontrar outro alguém. Este pequeno fato, multiplicado geometricamente por outras sequências, causava um grande evento no futuro. Noutro momento, alguém se distraía e, por pouco, deixava de fazer algo, o que acarretaria em outras mudanças. Pequenos detalhes causavam mudanças enormes ao longo do tempo. O importante mesmo, era que Olav sabia que isto iria acontecer, que essa nova máquina – em que era possível se fazer uma pequena interferência - teria de ser construída. Do contrário, o mundo como eles conheciam, não existiria. Ironicamente, tudo que estava acontecendo era baseado em modificações do passado - já acontecidas - mas que ainda iriam ser feitas a partir do futuro que eles tinham acabado de ver. Não confirmar o futuro, ou seja, não construir a máquina, seria destruir o passado e o presente que estavam vivendo. Haveria uma ruptura na própria estrutura da realidade. Daí nasceu o projeto “Gjennomgang”. Um sofisticadíssimo exame dos pequenos e quase incalculáveis eventos possibilitariam o “futuro certo”, incluindo a construção do gigantesco domo. Um a um, detalhes de mais de dois mil anos passados teriam que ser modificados. Na verdade, eles já tinham sido alterados, pois o passado já tinha acontecido. Se fosse possível – e não era – não fazer as alterações, haveria um paradoxo e, como consequência, o temido colapso da realidade, pelo menos essa em que Karev vivia. E foi assim que Karev tornou-se o diretor do projeto de “revisão”. Era quase uma ironia, ele sempre pensava, ter que modificar tanto para que tudo ficasse a mesma coisa. A complexa máquina fazia tudo, analisava e alterava cada pequeno detalhe, começando por um quase insignificante evento no ano 497 depois de Cristo. No entanto, ela precisava de um elemento humano. Na verdade, ela precisava de Karev. Por algum motivo, as partículas dos átomos de seu cérebro estavam envolvidas no processo e isso o fazia único e indispensável. Karev, o adolescente que sonhava com a ciência, havia se tornado o “Revisor do tempo”.
Desde o incidente de que Olav participara, cada vez era mais difícil “viajar” para o futuro. Havia uma espécie de bloqueio mental e estava óbvio que fazia parte do próprio processo. Karev tinha lembranças confusas de suas incursões. Ele não sabia quais eram as informações sobre o futuro com as quais ele tinha entrado em contato, mas ele sofria as consequências dela. Era um peso enorme para ele, saber que aquele enorme e complexo mecanismo – o domo que fazia as revisões – funcionava baseado em sua própria constituição neurológica e atômica. Ele tinha certeza de que algo muito importante estava acontecendo. O processo de revisão já tinha alcançado 79% do seu total e sua “angústia” interior aumentava cada vez mais.
Naquele dia, o “revisor” e a “máquina do tempo” estavam trabalhando na revisão de pequenas cenas do século 21. Um tropeção da garota que estava indo para uma entrevista de trabalho. Ela foi distraída por um conveniente impulso mental/elétrico do “revisor”. Machucou-se um pouco, quebrou o salto e perdeu a entrevista e o possível emprego. O ex-futuro patrão não se apaixonou por ela, não divorciou. A esposa nunca conheceu um tal de Belisário com quem se casaria depois da separação, e se ela tivesse se casado, ele deixaria de ser governador do estado... E os acontecimentos iam se escalando. Centenas de anos depois todas as consequências dessas alterações mudariam o mundo.
Coisas aparentemente más foram induzidas também. Na sequência, porém, faziam parte de um contexto maior. Ironicamente induzir uma coisa ruim podia impedir o acontecimento de algo muito pior. Na África, uma garota de seis anos foi atropelada por uma bicicleta e morreu. Sua mãe tentou gritar e avisá-la, mas devido ao impulso enviado pela máquina través de Karev, não conseguiu. Se ela tivesse sobrevivido, mais tarde se casaria e daria à luz um dos maiores ditadores do século. E esse, algumas décadas depois, teria causado um genocídio sem proporções. E, nesse caso, cinco pessoas importantes não teriam sobrevivido para exercer os papéis a que tinham sido destinados.
Não se podia evitar uma grande tendência, o curso básico da humanidade, mas, dentro da grande estrutura histórica, mudanças importantes poderiam ser feitas a partir de minúsculas interferências. E o resultado final de tudo isso garantiria o estado das coisas e a situação da humanidade naquele quase crepúsculo do terceiro milênio.
Karev, por um lado, se sentia o homem mais importante do Universo. Por outro lado, uma angústia enorme se formava dentro de seu interior. Ele sabia que ela vinha das coisas que ele via do futuro e a máquina deletava de seu cérebro. Aparentemente ela não apagava as impressões causadas, ou as consequências do conhecimento do que estava por vir.
Passaram-se mais dois anos e o processo de “revisão” estava chegando ao fim. Karev e a máquina faziam as últimas alterações na linha do tempo. Faltava muito pouco para o encerramento do projeto e finalmente a preservação do precioso futuro. Karev tinha se acostumado àquela pressão interior que se acumulava entro de si. Usava a admirável tecnologia da época para minimizar os seus efeitos. Mais dois meses se passaram e Karev se preparou para a sua última sessão: havia, então, apenas sete sequências de tempo que ele deveria mudar. A enorme máquina era formada de vários compartimentos, todos selados, cada um deles responsável por alguns tipos de subpartículas. Depois de passar por uma espécie de filtro virtual, elas eram reorganizadas dentro da cápsula onde Karev ficava sentado e era de lá que ele organizava suas ações para “reestruturar” a história da civilização humana. A inteligência da máquina determinava com precisão absoluta as coordenadas e o tempo exato onde se passaria o evento do passado a ser modificado. Uma vez que as cenas começavam a passar no “palco holográfico”, no meio do qual ele ficava, Karev fazia o esforço mental e o direcionava para o objeto de sua mudança. A máquina canalizava esse impulso e lhe dava a quase incalculável quantia de energia para alterar o momento ou a ação que estava ocorrendo. Karev gostava de comentar que provavelmente aqueles eram os momentos que as pessoas sentiam algo estranho ou um impulso interior para tomar uma atitude ou fazer um gesto que, na verdade, não vinha de sua própria consciência ou vontade. Era aquela força quântica viajando centenas de anos em retrocesso para mudar um detalhe. Seres humanos mais antigos, talvez tivessem pensado, nos momentos de intervenção, que eram espíritos atuando em suas vidas, outros, mais modernos, poderiam chamá-la de “impulsos do subconsciente”.
Finalmente Karev executou a última tarefa. Relaxou, pois aquilo tinha sido exaustivo, Esperaria mais alguns minutos e faria sua pequena incursão no futuro, com a longínqua esperança de conseguir reter algo do que estava para vir.
Com um aceno de mão, colocou a máquina para uma posição a dez anos no futuro, ali mesmo naquele lugar. O tradicional zumbido dos “reatores” de partículas preencheu o espaço da cápsula. Tudo que ele via era um imenso clarão, um branco. Rapidamente regrediu para 9,8,7 anos. O branco continuava. Deveria ser um defeito. A outra hipótese, era de que ele não existiria nos próximos anos. Agora sabia por que, mesmo sem lembrar, tinha aquele peso em seu subconsciente: ele não aparecia como ser vivo num futuro próximo. Acertou a máquina para apenas dez horas e o branco continuava. Não tinha sequer dez horas. Algo certamente estava errado. Foi regredindo, hora após hora, até chegar a 30 minutos do futuro, que era o momento em que sairia da cápsula. O espaço onde deveriam aparecer as imagens holográficas, continuavam assustadoramente vazias. Aquilo significava que ele nem sairia da cápsula, pois em minutos encerrava sua sessão. Quase em agonia, foi diminuindo os minutos. A 30 segundos de futuro, ele entendeu. Sua hora tinha chegado. Durante a contagem regressiva até zero ele finalmente entendeu por que seu espírito ficava sempre agitado quando saía da máquina. Ele via sua morte e, dessa vez, ela era iminente. Houve uma explosão surda e ele não viu mais nada. O interior da cápsula estava todo destruído, inúmeros alarmes soaram.
O revisor do tempo tinha cumprido sua missão e agora estava morto. Lá fora todos corriam e acionavam sistemas de resgate e recuperação. Em algumas horas, todo o sistema estava restaurado e funcionava normalmente. O revisor do tempo, Karev, estava morto, não havia como ressuscitá-lo. Seu corpo havia sido pulverizado a nível de partículas. O revisor do tempo tinha atingido seu destino e agora estava morto. Nada tinha sido por acaso. O projeto “Gjennomgang” tinha sido executado à risca.

 
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Histórias do Futuro
 
 
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Flávio Cruz
Enviado por Flávio Cruz em 13/06/2015
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